Professora indígena formada na USP funda a própria aldeia para recuperar tradições
Itamirim se dedica a trazer de volta hábitos culturais perdidos por tribo tupi-guarani em Peruíbe, no litoral paulista.
Por Isabela Madeira, Letícia Gomes e Yasmin Vilar.
Educadora indígena formada pela Universidade de São Paulo (USP), Miriam Lima dos Santos Oliveira, de 39 anos, se viu em uma situação incomum na aldeia Piaçaguera, onde vivia, em Peruíbe, no litoral paulista. Ela foi proibida pelo cacique, dentro da escola onde trabalhava, de dar aulas de cultura. Diante disso, resolveu fundar a própria aldeia, para recuperar os hábitos perdidos de sua etinia.
Seu nome, Itamirim, ‘pedra pequena’ em tupi-guarani, não traduz a força de sua atuação junto às aldeias indigenas do litoral sul.
Ela é uma espécie de porta-voz da aldeia Tabaçu Reko Ypy, na terra indígena Piaçaguera, na divisa entre Itanhaém e Peruíbe.
Seu discurso, firme e convicto, é de quem luta pelos direitos do índio continuar sendo índio, mas também de quem sabe que não dá para viver totalmente à parte do mundo ‘lá fora’.
Conhecida pelo seu nome indígena, Itamirim lembra que, com a proibição, acabou se demitindo. “Falei que ali não era meu lugar, não era meu espaço, porque eu não tinha me formado para aquilo”. Inconformada, se juntou a outras pessoas com o mesmo pensamento e fundou a aldeia Tabaçu Reko Ypy, também em Peruíbe.
O caminho que Itamirim encontrou para fortalecer a cultura tupi-guarani foi por meio de regras. Ela deu prazo de dois anos para que os ocupantes da Tabaçu aprendessem a língua, ou não poderiam permanecer na aldeia.
Além de aprender o tupi-guarani original, ainda há os conceitos de coletividade e o hayhu (amor índigena), que devem ser seguidos por todos os moradores. Quem deixa de cumprir um deles deve refletir no “toco do castigo”, que fica localizado no centro da aldeia - outro costume tradicional.
Os estudos fizeram com que Itamirim entendesse a importância da tradição. “Desde quando comecei a ver as coisas de modo mais amplo, como educadora, vi que a minha cultura está cada vez mais enfraquecida. Voltei preocupada com isso”.
Entretanto, não foi só o incentivo à propagação da cultura indígena que Itamirim encontrou em seus estudos. “Minha formação em São Paulo foi muito difícil. Sofri muita discriminação, e meu grupo também”, comenta. O preconceito, segundo ela, faz parte da vida dos índios, e muitos desistem de ter uma formação quando precisam frequentar a escola na cidade, no Ensino Médio. “As crianças não têm mais a língua indígena como língua mãe. Elas perderam isso, totalmente. E é uma luta dos educadores reverter essa história”.
Itamirim ressalta que o preconceito ocorre mesmo em ambiente acadêmico. “Lá na USP, meu grupo sofreu muito preconceito. Estávamos almoçando no bandejão, e vimos que as pessoas deixavam de almoçar, ou entrar no refeitório, porque não queriam comer perto dos índios”.
O ensino das crianças indígenas, segundo ela, também apresenta uma dualidade cultural.
As crianças pequenas sentam-se em tapetes, e dentro da sala, há a presença de uma “árvore do saber”, que contém frases de grandes pensadores, entre eles o Dalai Lama.
Na estante de livros, há grandes títulos da cultura brasileira, mas poucos em tupi-guarani. A professora explica que não há publicações sobre a cultura indígena. Os ensinamentos são transmitidos quando as histórias são contadas. “Esse resgate é feito por meio da oralidade. Os mais velhos contam às crianças sobre as lendas e mitos nativos”.
A DINAMICA NA ALDEIA
A aldeia Tabaçu se divide em dois espaços, que mesclam o contemporâneo com o tradicional. As casas de madeira foram construídas em círculo, seguindo a disposição das ocas, mas não do modo tradicional, em razão da falta de matéria-prima.
Nas casas, há eletrodomésticos como geladeiras e televisões, mas os 39 moradores dividem um único chuveiro elétrico. Ele se destina, basicamente, às crianças pequenas, em noites muito frias. Os demais tomam banho no rio. Além disso, há celulares com acesso à internet.
A aldeia Tabaçu adota um projeto de vida no qual a cultura se divide entre conceitos tradicionais e costumes da cidade. Itamirim busca o equilíbrio, e não quer excluir totalmente a influência externa, nem deixar que o conforto urbano seja predominante, como ela considera ser o mais comum em outras aldeias.
Criada por ela e seu marido, o morubixaba (cacique), em 2012, a Tabaçu é uma das nove aldeias existentes na Terra Piaçaguera, e abriga atualmente nove famílias. Nas aldeias próximas, é comum notar a influência externa na comunidade. Um exemplo é a casa de um chefe, feita em alvenaria, com ar-condicionado e TV a cabo.
Itamirim afirma que é um desafio ensinar atividades tradicionais aos mais jovens. “O que a gente tem dificuldade é de fazer o jovem aprender a retomada da caçada, em vez de comprar carne no mercado”. Esse tipo de conhecimento é o contrário do que a líder considera como “hábitos supérfluos”.
DIVISÃO NATURAL
As divisões e criações de novas aldeias indígenas, como o caso da Tabaçu, ocorrem normalmente, por divergências políticas ou religiosas, explica Cristiano Vieira Gonçalves Hutter, coordenador regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) Litoral Sudeste. Ele afirma que existe uma idealização em torno da vida dentro das aldeias. “Quem é de fora quer ver uma aldeia de 1500, e os índios, como qualquer outra civilização, evoluem. Hoje tem internet, energia, carro, celular. Mas eles não deixam de ser indígenas por isso”.
Hutter comenta que a preocupação em fortalecer a cultura se faz presente na etnia tupi-guarani, que carrega uma relação maior com pessoas de fora da aldeia e sofre grande influência da cidade. Ele explica que é diferente da guarani, outra etnia presente na Baixada Santista, cuja cultura teve menor impacto externo.
A interferência da cidade tanto pode ser positiva quanto negativa, explica o coordenador. No caso da Tabaçu, Hutter diz que a influência do tempo que Itamirim passou na capital paulista está no turismo de base comunitária, determinante para o crescimento da aldeia. Lá, os visitantes podem vivenciar a tradição indígena com comidas típicas e atividades, e levam esse aprendizado para fora.
O interesse de instituições como a Funai é de proteger e promover a causa indígena, explica o coordenador. Um dos modos de se fomentar esse aspecto é por meio de parcerias com universidades, a partir de cotas. O estudo formal é recente - em torno de 20 anos - nas aldeias da Baixada Santista.
*Sob supervisão de Ivair Vieira Jr
Fonte: G1 Santos
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