A bênção, São Jorge!

Apesar de ter o nome retirado do calendário litúrgico católico em 1969, a devoção ao "santo guerreiro" continua fortíssima

Por J.A. Dias Lopes



Patrono de Portugal, Inglaterra, Geórgia, Lituânia, Sérvia, Montenegro, Etiópia, Barcelona, Moscou, Beirute e do S. C. Corinthians Paulista, São Jorge foi festejado em todo o mundo na segunda-feira passada, dia 23/4, data do seu martírio. Católicos, ortodoxos, anglicanos e adeptos das religiões afro-brasileiras o veneram. Na umbanda, associam-no a Ogum, o orixá do ferro e da guerra; no candomblé, a Oxóssi, o orixá das matas e da caça. 

A iconografia o apresenta montado em um cavalo branco, usando armadura, esporas, capa vermelha esvoaçante, espada na cintura e cravando uma lança no dragão da maldade.

“Santo guerreiro”, teria poderes miraculosos. Afastaria a inveja, as traições, o chamado mau olhado, as energias negativas nas quais tanta gente acredita, as suspeitas de feitiço e nos protegeria das perdições em geral. 

O dragão que ele ataca representa demônio. São Jorge nasceu no século III, na região histórica da Capadócia, que compõe a Turquia moderna. Mudou para a Palestina, onde se tornou soldado de cavalaria do Império Romano e, por defender os cristãos, foi decapitado em 303 durante as perseguições feitas aos seus irmãos pelo imperador romano Diocleciano.

Curiosamente, São Jorge só passou a combater o dragão da maldade na Idade Média, oito séculos depois do seu martírio, por influência de uma lenda. 

Atravessando uma terra de pagãos, o santo teria encontrado uma moça vestida de noiva, que caminhava sozinha na praia. Intrigado, aproximou-se dela. “Fuja, cavaleiro, ou o dragão também o matará”, gritou a moça. Apesar de ser filha do rei que governava a cidade vizinha, ela fora sorteada para ser devorada por aquele animal horrendo, com garras de leão, asas de águia ou morcego, de bafo insuportável, que vomitava fogo.

O rei não conseguiu impedir o sacrifício da filha. Todos os anos uma jovem da cidade era sorteada para morrer. Caso contrário, o dragão exterminaria sua população sem piedade.

São Jorge ignorou a advertência e retrucou à moça: “Deus proíbe um homem fugir quando uma donzela está em perigo”. 

Então, avançou sobre o dragão, que lhe partiu a lança com os dentes, deu-lhe uma violenta pancada com a cauda e o derrubou do cavalo. Mas o santo conseguiu desembainhar a espada e cravá-la debaixo da asa do monstro fabuloso. São Jorge mandou a moça puxar o dragão até a cidade. 

A população recebeu os três apavorada. 

Na praça local, o “santo guerreiro” desferiu o golpe mortal naquele ser abominável e explicou: “Fiz isto para demonstrar o poder de Deus e anunciar-lhes a verdadeira fé”.

Os cruzados – integrantes das expedições militares que entre os séculos XI e XIII partiram da Europa Ocidental em direção à Terra Santa com o intuito de tomá-la dos muçulmanos – espalharam internacionalmente a devoção a São Jorge. Acreditavam que ele os ajudou em 1098, na conquista de Antioquia, no sudoeste da Turquia. 

Os ingleses já o cultuavam desde o século VIII. Mas os responsáveis pela consolidação da fé no santo seriam os cruzados retornados da Terra Santa.

Soldados ingleses que ajudaram D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, na conquista de Lisboa, em 1147, fizeram o mesmo no solo lusitano. Consolidada a vitória, o soberano transformou em sua residência a cidadela mourisca do alto da colina que domina a cidade, chamando-a de Castelo de São Jorge. D. João I (1357-1433), o fundador da dinastia de Aviz, converteu o santo em patrono nacional. Desde o século XIV sua imagem é conduzida pelos fiéis na procissão anual de Corpus Christi, expressão latina que significa Corpo de Cristo.












São Jorge por Ermelinda

Luís da Câmara Cascudo, o grande pesquisador das manifestações culturais brasileiras, conta no “Dicionário do Folclore Brasileiro” (Global Editora, São Paulo, 2001) que a tradição chegou ao nosso país com os portugueses. Por muito tempo, em muitas cidades brasileiras, na festa de Corpus Christi, “a figura de São Jorge, montando um cavalo branco e cercado de aparato militar, era o maior centro de interesse”. Cascudo acrescenta que, em São Paulo, a tradição se manteve até 1872, “quando, desequilibrando-se, a imagem caiu sobre um soldado, matando-o”.

Nunca faltou comida na festa do santo. 

Na Inglaterra, são preparados doces, um dos quais se chama trifle. Trata-se de uma sobremesa à base de pão de ló ensopado em vinho fortificado e licoroso. Serve-se em taça transparente, com camadas de gelatina, amoras, framboesas ou morangos e creme de leite, finaliza-se com uma camada de fruta fresca, amêndoas torradas e nata batida ou chantilly.

Em Portugal, a mais conhecida das preparações alusivas ao santo se encontra no arquipélago dos Açores, onde há uma ilha com o nome dele. 



São as Espécies de São Jorge, rosquinhas que incorporam especiarias, com pequenas frestas por onde se vê o recheio. 

No Brasil, faz-se no interior do Nordeste os Biscoitos de São Jorge. Um dos ingredientes é o amendoim. Uma variação são os antiquíssimos Biscoitos de Nata, bastante populares em Minas Gerais, muitas vezes comida votiva ao santo. Não leva amendoim.

A umbanda e o candomblé homenageiam São Jorge do mesmo jeito. 

Cada um desses sincretismos introduzidos no Brasil pelos escravos tem comidas especiais. 

Um dos alimentos que os umbandistas, por exemplo, oferecem a Ogum/São Jorge é o amendoim.

Os demais são as frutas, ervas e pescados: manga espada, o inhame cozido e coberto de mel, o inhame assado nas brasas regado com dendê e o peixe de mar assado. Conforme os devotos, o orixá do ferro e da guerra também gosta de cerveja branca.

Em 1969, o papa Paulo VI reformou o calendário litúrgico católico, o elenco anual de festas, solenidades e cerimônias, e baniu o nome de São Jorge, tornando opcional a devoção a ele. 

O motivo seria não haver prova definitiva da sua existência, embora as relíquias do santo estejam guardadas na igreja que lhe é dedicada em Lida, Israel. O templo foi erguido por ordem do imperador romano Constantino I. 

Os fiéis do mundo inteiro ficaram inconsoláveis. Nem precisavam reagir assim. 

O “santo guerreiro” continuou a ser cultuado pela mesma força que o elevou à glória dos altares: a fé pura, simples e autêntica do povo. No Brasil, o apreço a São Jorge continua fortíssimo, louvam-no da literatura de cordel à música popular, como no emocionante samba Ogum, gravado por Zeca Pagodinho e Jorge Bem Jor.

OGUM

Cultivou a terra e plantou, fazendo com que dela o milho e o inhame brotassem em abundância. 
Ogum por Glauco Rodrigues




Ogum ensinou aos homens a produção do alimento, dando-lhes o segredo da colheita, tornando-se assim o patrono da agricultura. Ensinou a caçar e a forjar o ferro. Por tudo isso foi aclamado rei de irê, o Onirê.
É comum nos Candomblés brasileiros a presença do pão de Ogum nas festividade desse Orixá, mas, de onde vem tal rito? Qual é a explicação que se dá para a ligação do Orixá da forja com o pão? Bem, baseado nos relatos dos meus mais velhos, aos quais já questionei essa prática, a resposta é simples: uma promessa!

De acordo com os antigos, o ato de “rodar o pão de Ogum” teria precedentes numa promessa do finado Babalorixá Valdomiro de Xangô, o pai Baiano. Devoto de Santo Antônio, o sacerdote teria feito uma promessa ao seu santo protetor de que distribuiria o pão aos pobres e escolheu para isso as celebrações de seu também protetor Ogum.


Para os católicos, o pão de Santo Antônio, remonta a um fato curioso que é assim narrado:

“Antônio comovia-se tanto com a pobreza que, certa vez, distribuiu aos pobres todo o pão do convento em que vivia. 
O frade padeiro ficou em apuros, quando, na hora da refeição, percebeu que os frades não tinham o que comer: os pães tinham sido roubados.

Atônito, foi contar ao santo o ocorrido. Este mandou que verificasse melhor o lugar em que os tinha deixado. O Irmão padeiro voltou estupefato e alegre: os cestos transbordavam de pão, tanto que foram distribuídos aos frades e aos pobres do convento”.

Até hoje na devoção popular o “pãozinho de Santo Antônio” é colocado, pelos fiéis nos sacos de farinha, com a fé de que, assim, nunca lhes faltará o de que comer, símbolo que se estendeu a Ogum.

Originalmente à base de trigo, o pão de Santo Antônio passou a integrar o inhame, alimento votivo de Ogum. Preparado nas casas de Candomblé, o alimento é assado em fornos à lenha, depositado em um cesto ornamentado de mariwò e levado à sala pelo Orixá.

Embora a maioria das imagens do santo não tragam tal símbolo, existem relatos de que na igreja de Santa Luzia no Castelo, no Centro do Rio de Janeiro, no fundo da igreja existe uma Imagem de Santo Antônio, tendo sobre o braço esquerdo o Livro dos Evangelhos, com o Menino Deus sentado sobre o livro, segurando um cesto repleto de pães, enquanto Santo Antônio com a mão direita oferece um pão a alguém.

Em se tratando da mitologia dos Orixás, Ogum é o Orixá que possibilitou o cultivo contínuo da terra num mesmo lugar. Filho de Sárokò (Orixá Okò) - o Orixá da agricultura -, Alagbedé, o ferreiro, foi quem fabricou ferramentas que davam mais eficiência ao trabalho. Assim, além de não faltar alimentos, puderam também surgir as grandes civilizações, considerando que antes os povoados migravam de acordo com as condições do solo.

Portanto, a promessa se tornou tradição. Ainda que não seja um rito obrigatório, o pão de Ogum é sempre esperado nos Candomblés e a fé das comunidades de terreiro ainda mantém o alimento nas latas de mantimentos.



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