A consagração do Cuscuz
O cuscuz foi o último prato a entrar para a lista de patrimônios imateriais da humanidade elaborada pela Unesco. Originária do norte da África, a iguaria tem séculos de história e sua receita possui variações em todo o planeta.
Não somente o prato em si, mas os saberes e as práticas da produção e a maneira como é consumido levaram o cuscuz a um novo patamar gastronômico. Toda essa relação em torno da receita a base de sêmola de trigo foi declarada Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura, a Unesco.
A requisição para dar ao cuscuz o status de obra de arte da culinária foi feita conjuntamente entre Argélia, Marrocos, Mauritânia e Tunísia.
Ao ser aprovada no final de dezembro, foi celebrada em diversos países que o consomem diariamente, como a França e o Brasil. Mas o que essa classificação significa na prática? Além de dar notoriedade ao prato, os países que dividem uma mesma herança cultural podem se aproximar diplomaticamente através de questões pacíficas e ainda valorizar sua história e turismo com o respaldo da ONU. Principalmente em países que vivem se estranhando politicamente, como é o caso das nações envolvidas nessa escolha.
“Essa inscrição conjunta ilustra até que ponto o patrimônio cultural pode ser um assunto sobre o qual os estados se reúnem e cooperam”, disse a organização em comunicado oficial. O Brasil, por exemplo, tem a capoeira como patrimônio imaterial, mas nada ainda envolvendo o paladar.
O termo cuscuz é a tradução e transcrição latina de seksu, kuseksi ou kseksu, termos de origem berbere, etnia do norte do continente africano, que significam grãos ou sementes bem arredondadas. Por seu fácil preparo, sempre foi uma refeição prática, nutritiva e que exige poucos utensílios para o seu preparo, sendo ideal para povos nômades e agricultores com poucas variedades de plantio.
“Historicamente eram as mulheres que colocavam os grãos em uma peneira ou bacia, acrescentavam a água e a farinha de modo a engrossar a massa”, explica Carlos Alberto Dória, sociólogo especialista em culinária. Depois de pronto, os condimentos que acompanham o prato podem ser inúmeros, de legumes a especiarias e até carnes, dependendo do país e do gosto de quem o prepara.
“O cuscuz é como um arroz e geralmente serve como um acompanhamento a outro prato. No Brasil, por exemplo, os bandeirantes que exploravam o território e faziam grandes viagens, levavam porções de cuscuz com carne seca para as expedições”, diz Dória.
Cruzando o Atlântico
Foi, aliás, através da colonização portuguesa que a iguaria chegou ao Brasil já no século 16. Por seu fácil modo de preparo, logo caiu nas graças dos habitantes do território nacional e hoje existem diversas receitas como o cuscuz paulista, o tropeiro e o nordestino que é inclusive consumido no café da manhã.
Apesar da atual popularidade, a história nem sempre foi gentil ao prato associado aos árabes.
A primeira menção literária ao cuscuz apareceu em um livro de receitas do século 13, época de forte presença muçulmana no continente europeu. “Esse alinhamento com uma cultura não cristã levou, durante a Idade Média e até o final do império Otomano, a um forte preconceito contra o prato por questões religiosas”, diz Dória.
Felizmente, o cenário agora é outro. Não é pecado consumir cuscuz, tanto que atualmente ele é o terceiro prato mais amado pelos franceses segundo um levantamento da revista Gourmand, passando em preferência alguns clássicos do país como o foie gras, o ratatouille e o escargot.
Vale lembrar que a própria “culinária francesa”, em todos os seus detalhes, também é um dos patrimônios imateriais da Unesco.
As tradições e saberes relacionados ao cuscuz fizeram sua entrada, quarta-feira, 16 de dezembro, no patrimônio cultural imaterial da Unesco.
Uma vitória da Argélia, Marrocos, Mauritânia e Tunísia, que superaram as tensões para defender conjuntamente esta questão. Esta inscrição é, acima de tudo, um reconhecimento mundial para a “semente mágica” , como a chama a cozinheira Nordine Labiadh.
Este último, chef do restaurante parisiense A mi-chemin, dedica um amor desmedido a este prato emblemático da sua Tunísia natal e ao qual acaba de dedicar um livro, Couscous pour tous .
Para o Le Monde Afrique, ele reage à distinção deste prato, que com o tempo se tornou um dos favoritos dos franceses.
"O cuscuz sobreviveu aos séculos sem nada o desestabilizar"
Em toda a região do Grande Magrebe, o cuscuz existia antes mesmo do desenvolvimento da culinária. Sobreviveu aos séculos - o período romano, as colonizações, a invasão turca - sem nada o desestabilizar. Resistiu ao tempo e à globalização.
Durante todos estes tempos, tem sido uma solução econômica comer de forma simples, com produtos locais, convidar e oferecer. Muitos códigos estão associados a essa refeição, principalmente em torno da educação: com o cuscuz, as crianças são ensinadas a se comportar bem à mesa, a comer bem do mesmo prato, e incutimos nelas a noção de compartilhar.
Não é incomum a aliança de quatro países na candidatura de cuscuz, dadas as tensões que caracterizam suas relações?
Sim, essa aliança pode parecer surpreendente quando você pensa em política. Mas se esquecermos da política, vemos que o povo dessa região sempre esteve ligado pela cultura, história, comida ... E não esperou pela Unesco para isso.
Meus próprios ancestrais viveram em áreas sem fronteiras.
Esses países querem dar a alma ao cuscuz. Quando provamos cuscuz, ficamos em círculos ao redor do prato, somos iguais. É o próprio símbolo de uma forma de democracia.
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