Patente, denominação de origem, patrimônio: como se registra um alimento?.

Por Luiza Pollo

Durante quase cinco anos, o brasileiro que quisesse vender açaí no Japão precisava inventar outro nome para o produto. A fruta, que fica difícil descrever por outra palavra que não seja simplesmente açaí, foi alvo de disputa internacional entre 2003 e 2007, quando a empresa K.K. Eyela Corporation patenteou a marca em território japonês.


Foi uma longa batalha, até que o governo brasileiro venceu e garantiu o cancelamento da patente no órgão responsável pelo registro, lá do outro lado do mundo. Na mesma época, corríamos também para cancelar o registro do nome cupuaçu, que passou pelo mesmo problema entre 2002 e 2004 — ironicamente, por uma empresa japonesa chamada Asahi Foods.
Na foto:O ofício das baianas do acarajé é considerado patrimônio imaterial

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Parece um assunto um pouco fora do cotidiano, mas César Peduti Filho, advogado especialista em propriedade intelectual e sócio da Peduti Advogados, conta ao TAB que os pedidos de registro de alimentos, ingredientes e receitas são corriqueiros no escritório. Exatamente pelo pouco conhecimento sobre esses registros, muita gente quer pagar para ter exclusividade sobre algo que nem é possível patentear no INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), órgão que regula esses trâmites aqui no país.

Dá para patentear um ingrediente? É possível pleitear o registro de patente de uma fruta, uma planta e outros ingredientes, mas isso não significa que ele será aceito. Aliás, é bem difícil que isso aconteça, diz Peduti Filho. O INPI fica atento a registros que possam causar processos como o do açaí ou do cupuaçu, por exemplo, e dificilmente vai conceder a patente. O mais comum é pleitear esse registro para um produto final.
"O princípio por trás da obtenção do registro da marca é poder explorar com exclusividade um nome que passa a ser conhecido pelas pessoas e ser vinculado a um produto específico.
Se uma empresa investe muito na divulgação de determinado alimento que ela cria, o que ela quer é que todo mundo conheça aquele biscoito, por exemplo, não como 'biscoito da Nestlé', mas como 'biscoito Passatempo'", exemplifica o advogado.

Treta. Em 2018, o Instituto Ata, do chef Alex Atala, foi alvo de acusações ao solicitar a proteção da pesquisa que envolvia a baunilha do Cerrado.
O produto de Goiás, considerado iguaria, rendeu um projeto em parceria com a comunidade quilombola Kalunga de Vão de Almas. "Nós estávamos preocupados com o registro da pesquisa para depois não haver pirataria, não haver gente interessada economicamente em dizer que foi quem fez a pesquisa", disse ao TAB o advogado Carlos Frederico Barbosa Bentivegna, conselheiro do ATA.

No entanto, houve críticas por parte de moradores da região que se sentiram lesados, e o instituto retirou o pedido de registro, que não era de patente do ingrediente, nem de de exploração comercial e financeira dos produtos feitos com ela.
"A baunilha é uma orquídea. Eu não posso fazer por exemplo o registro comercial de uma rosa. A lógica era completamente outra", afirma Bentivegna.
Até existem maneiras de se registrar ingredientes e modos de produção, mas a ideia é exatamente protegê-los de virarem marca como foi o caso do açaí. Uma delas é a indicação geográfica (I.G.).

O que é isso? Em alguma noite de Réveillon da sua vida você já deve ter ouvido falar que aquela bebida cheia de bolhinhas não era champagne, e sim espumante, porque não veio da região francesa que leva esse nome. Isso ocorre porque o produto champagne possui denominação de origem controlada (D.O.C.), que designa, além da região de produção, uma série de fatores envolvidos na fabricação daquela bebida.
Assim, só pode ser chamado de Champagne o vinho espumante que obedeça a todas essas regras pré-definidas.
E para quê isso serve? "A denominação de origem controlada D.O.C., assim como a Denominação de Origem (D.O.) e a Indicação de Procedência (I.P.) passam 'segurança' aos consumidores de que o produto é singular devido às suas raras qualidades, justificando o preço mais alto. Incentiva arranjos produtivos locais, incrementa o turismo, valoriza os imóveis e aumenta a arrecadação dos tributos", explica ao TAB Paulo Brasil Dill Soares, professor adjunto do Departamento de Direito de Macaé da UFF (Universidade Federal Fluminense) e especialista no tema.

Dá um exemplo. O Brasil tem diversos produtos registrados com D.O. e I.P. — sendo D.O.C. apenas uma marca por aqui. Um dos mais conhecidos é o primeiro registro de I.G. do país, os vinhos do Vale dos Vinhedos, no Rio Grande do Sul. Esse tipo de registro é diferente da patente, e protege o nome Vale dos Vinhedos de ser usado em marcas. Portanto, seria possível pleitear o registro do nome "Vinho do Marquinhos do Rio Grande do Sul", mas não "Vinho do Marquinhos Vale dos Vinhedos". Mesmo assim, as tentativas de registro de nomes não registráveis são comuns, aponta Peduti Filho. Ele explica que o próprio INPI tenta promover que qualquer pessoa consiga acessar o órgão com facilidade, sem a necessidade de contratar o serviço de um profissional especializado, e poucos conhecem os detalhes da lei. Outra tentativa muito comum, segundo ele, é de registrar uma receita.

E não pode? Segundo o advogado, a maioria das receitas não é patenteável.
"Para que você obtenha o direito de exclusividade de exploração sobre uma receita ou um processo de fabricação, ou seja, para que você possa ter uma patente, ela precisa preencher os requisitos de patenteabilidade, que são muito rígidos", afirma. "Eles são: novidade, aplicação industrial — essas duas a gente até consegue justificar em alguns casos —, mas também precisa configurar atividade inventiva."

Ou seja, a combinação de ingredientes ou o processo de fabricação, para ser patenteado, deve incluir o que o especialista chama de salto tecnológico. Isso porque, ao conceder exclusividade de exploração sobre um processo, o INPI está abrindo uma exceção ao direito de livre iniciativa, e isso precisa ter uma boa justificativa para acontecer. Um novo processo de produção que vá melhorar a indústria alimentícia, por exemplo, seria o caso. O bolo de caju com castanhas do Pará e calda de limão que você inventou em casa e ficou uma delícia, não. Peduti Filho alerta que, por desconhecimento ou má-fé, alguns indivíduos ou mesmo advogados pedem o registro de direito autoral sobre uma receita, mas isso não vale muita coisa. O que está escrito pode até pertencer somente a você, mas isso não impede que alguém a reproduza.

E se eu quiser registrar o meu bolo de caju? Bom, nesse caso, você já deve ter entendido que não adianta tentar patentear a receita e nem os ingredientes. O que o advogado sugere é criar um nome para o produto final e protegê-lo dessa forma. Pode até ser que uma confeitaria copie o seu processo de produção e use exatamente os mesmos ingredientes que você, mas o "Bolo de Caju Original do Marquinhos" é o seu. "A conquista do direito sobre a marca é que vai garantir alguma exploração de exclusividade", diz Peduti Filho.

E quando a receita é um bem cultural? Ainda não falamos de uma outra possibilidade de registro, que vai além do INPI. É o do Patrimônio Imaterial. Aqui no Brasil, esse selo é regido pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), mas vem originalmente da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) sob o nome Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A culinária mexicana está nessa lista internacional, por exemplo. No Brasil, o ofício das baianas do acarajé — que engloba toda a profissão, a cultura e os costumes, além do alimento em si — é um exemplo.

O antropólogo brasileiro Raul Lody, que prefere ser descrito como pensador da comida e da alimentação, participou do processo de registro de ambos. Segundo ele, a criação de um dossiê para esse tipo de registro envolve uma equipe multidisciplinar e pode levar anos, o que em si já é benéfico, opina o especialista, ao passo que reúne conhecimentos acerca do tema e também ajuda a gerar registros culturais.

Como manter esse patrimônio vivo? Lody destaca que não se pode esquecer o peso dos consumidores nessa conta.
"Tem a questão econômica, tem a questão social, mas tem o mercado. Não pode e não se deve esquecer do mercado. Não é 'apenas' um reconhecimento cultural, é um reconhecimento complexo. Para o cultural estar vivo, na maioria das vezes é preciso um aporte econômico. São patrimônios vivos que precisam ser consumidos", ressalta. A chef Bel Coelho, conselheira do Instituto Ata e pesquisadora de cultura alimentar, adiciona ainda outros elementos a essa equação: quem esta à frente dos restaurantes, e a própria indústria alimentícia.
"O público final é superimportante. Só que as pessoas não sabem muitas vezes nem da existência de alguns alimentos. Então o chef tem esse papel de divulgação, criação de repertório e receituário, de ajudar na intimidade de um público final com esses alimentos", diz ela. "E enquanto a indústria não abraçar e não produzir com esses alimentos, a gente não consegue um grande alcance."

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