O livro "Trilhando os sabores da tradição" recupera os saberes da culinária da Princesinha do Sertão.
Quando falamos em gastronomia, culinária tradicional, ou ancestral, fazemos referências as nossas raízes culinárias, pessoas ou grupos sociais que criaram, difundiram, e principalmente que perpetuam nosso sistema alimentar e cultural.
Há pouco mais de uma semana, foi lançado virtualmente numa live, o livro Trilhando os sabores da tradição, da Editora Segundo Selo,
O livro faz parte do Projeto Memória Territorialidade e Gastronomia de Feira de Santana teve apoio financeiro da Prefeitura através da Secretaria Municipal de Cultura Esporte e Lazer, via Lei Aldir Blanc direcionado pela Secretaria Especial de Cultura, do Ministério do Turismo e Governo Federal.
Convidamos a autora, professora e pesquisadora Monia da Hora, para falar um pouco do seu interesse pelo tema, da importância do livro para a gastronomia de Feira de Santana, "A Princesinha do Sertão", apelidada por Ruy Barbosa, em 1919, traz, então, desde suas raízes, características que ainda hoje fazem parte de seu cotidiano: a religiosidade de seu povo, a situação de entroncamento de estradas, e as intensas atividades econômicas, tem uma historia rica e peculiar.
SF: Fale da importância do lançamento do livro para a culinária de Feira de Santana, como este trabalho pode ser aporte no sentido da compreensão da culinária local.
M:Feira de Santana tem um amplo viés comercial para o estado da Bahia. É uma cidade favorecida geograficamente por se encontrar em um entroncamento rodoviário que lhe possibilita grande movimentação de pessoas, de diversos estados do Brasil. A comida está em todos os processos dessa vasta articulação comercial.
Entretanto, apesar de sua disponibilidade para o turismo comercial, existe um desmerecimento ou desvalorização da culinária local. Muitos afirmam que a cidade feirense não possui um prato típico, ou tem pratos sem um devido “requinte”.
Nesse sentido, o livro traz informações históricas e etnográficas que destacam a riqueza da culinária feirense e argumentam a favor de sua gastronomia. A proposta do trabalho é entender como se formou o tecido alimentar da cidade, e de que modo a comida se entrelaça com a nossa identidade cultural, a partir de fatos históricos relacionados ao desenvolvimento da grande feira.
O nome Feira de Santana vem da feira livre que se formou em seu território. Nela, diversos povos e etnias interagiram, de diferentes maneiras, e contribuíram para formar “a” feira, que se tornou uma das mais importantes do estado da Bahia. Desse comércio, os feirantes tiraram e tiram, até hoje, sua principal fonte de renda e sustento familiar.
Nesse contexto, valorizar a comida que historicamente nutriu e nutre grande parcela da população feirense é, igualmente, reconhecer a relevância de quem prepara, comercializa e se alimenta dessa comida: os homens e as mulheres, na sua maioria negros e mestiços, pobres e sertanejos, que “arregaçam as mangas” e vendem suas mercadorias em nossa cidade. Não temos como desassociar a alimentação da formação cultural de um povo. Então, o objetivo do livro é trazer o conhecimento, pertencimento e o reconhecimento merecido à gastronomia de Feira de Santana, além de contribuir para estudos científicos e acadêmicos sobre a identidade cultural da Princesa Sertão através da alimentação.
SF: Como foi o processo de formulação do livro, fale um pouco da contribuição das outras pessoas.
M: O corpo técnico do projeto foi composto pela socióloga Edcarla Macedo, a cientista social Fernanda Santiago, a antropóloga Tatiane Muniz, o historiador Clóvis Ramaiana, a fotógrafa Belle Quintas, o geógrafo Gabriel Moreira e o antropólogo Alonso Estevam, enquanto o marketing digital e as mídias sociais foram articulados por Giuliana Diniz e Juliana Vital.
A metodologia usada no estudo foi uma pesquisa bibliográfica e uma etnografia exploratória, composta por entrevistas semiestruturadas on-line (por conta da pandemia de Covid-19) e presenciais, com os personagens comerciantes. Fomos a campo conhecer a história e a comida comercializada de uma ponta a outra da cidade.
As atividades eram distribuídas da seguinte forma: Edcarla e Fernanda assumiram as metodologias para o desenvolvimento da pesquisa e me conduziram na construção; Tatiane trabalhou os processos antropológicos, coletando dados em campo e escrevendo o terceiro capítulo; o professor Clóvis, que tem a sua linha de pesquisa na cultura sertaneja, contribuiu com a validação dos contextos históricos e com o prefácio da obra; Belle Quintas assumiu a fotografia do livro e a identidade visual; e a minha contribuição foi coordenar o projeto em aspectos gerais, fazer as pesquisas bibliográficas e de campo e escrever os capítulos. Na escrita, tive o suporte do antropólogo Alonso Estevam e do geógrafo Gabriel Moreira nos contextos geográficos; eles atuaram como assistentes de pesquisa.
No marketing, contamos com Giuliana Diniz e, na assessoria de imprensa, com Juliana Vital.
Foto antiga da Feira
SF: Ao seu ver. de que forma este trabalho contribui na questão da descolonização da nossa gastronomia?
M: Um dos primeiros passos para a descolonização dos saberes é conhecer a própria história a partir de pontos de vista diferentes das perspectivas dominantes.
Desse modo, destacamos no livro personagens historicamente subalternizados, como os tropeiros, quitandeiras, pessoas escravizadas, povos indígenas e feirantes. Não deixamos de mencionar o papel dos colonizadores europeus – invasores – em Feira de Santana, mas buscamos não romantizar as relações entre os grupos étnicos tradicionalmente considerados formadores da sociedade brasileira. Em outras palavras, não esquecemos que as interações entre colonizadores, negros e indígenas foi marcada por muita violência – inclusive no que diz respeito à desvalorização da comida da população mais humilde.
O objetivo do trabalho é justamente desconstruir a ideia de que existe uma alta gastronomia e uma pobre gastronomia. Para isso, é fundamental entender que o campo gastronômico não é “neutro”.
É uma área de saber que foi construída historicamente, sendo atravessada por relações de poder que por muito tempo definiram, com base em critérios elitistas e coloniais, o que era ou não “sofisticado” para ser alimento.
Assim, o livro fornece uma outra visão sobre a gastronomia, permitindo aos leitores – sejam turistas ou habitantes locais – compreender que as comidas sertanejas tem valor histórico, cultural, econômico e nutricional. Nossas condições geográficas e climáticas, bem como nosso contexto histórico, propiciaram ingredientes e saberes únicos, que marcaram a culinária local. Por isso, temos que respeitar e valorizar a gastronomia feirense, reconhecendo a nossa cultura através da comida e exaltando os personagens que construíram e constroem o segmento gastronômico da cidade. Acredito que esse pertencimento já é um primeiro passo para fidelização e consolidação da culinária local.
SF:Como você relaciona os aportes Indígenas e Negros na alimentação da região de Feira, que permanecem no cotidiano dos habitantes ainda hoje?
M: A gastronomia de Feira de Santana é constituída pelos povos indígenas e negros, que foram os grandes difusores da feira livre. A miscigenação desses povos deu origem a outros grupos: os tropeiros e comerciantes que deram identidade à cidade.
Muitos alimentos são destaque na alimentação cotidiana em Feira de Santana. Um grande exemplo é a maniçoba, que está presente em diversos locais da cidade. É possível reconhecer as influências indígenas tanto em preparações como a maniçoba ou o peixe moqueado, quantos em produtos derivados da mandioca, comercializados em todas as feiras livres, Centro de Abastecimento, ambulantes e em ruas específicas que contam com muitas mulheres conhecidas como “quitandeiras”. Elas atuam até os dias de hoje, comercializando beiju, tapioca, puba.
Então, dessa forma, é possível identificar muitas influências indígenas na alimentação da cidade.
"As pessoas negras tiveram uma importância fundamental para a formação da Feira Livre, que se formaria em Feira de Santana. Homens e mulheres atuavam na feira como comerciantes de variados itens, incluindo frutas como caju, banana, jaca, manga, melancia e feijões, e produzindo alimentos para o consumo derivado da mandioca.
Na venda dos itens citados, porém, destacava-se a força de trabalho feminina: eram as chamadas quitandeiras.
As quitandeiras ou “ganhadeiras” eram mulheres, na sua maioria negras e mestiças, que circulavam pelas ruas das cidades comercializando os seus quitutes e tabuleiros de
doces. Vendiam de porta em porta itens como mingau, milho, beiju, carimã, tapioca, verduras e frutas, em uma prática habitual até os dias de hoje." "Trilhando os sabores da tradição"
Além disso, Feira de Santana é preta, e não é diferente na culinária.
As baianas de acarajé são atuantes na cidade. Feira teve na sua construção muitos quilombos, nos quais os negros se refugiavam e se reuniam para expressar sua cultura na alimentação, dança, música e religião. Esses elementos faziam parte do cotidiano e, dessa forma, as influências de matriz africana saem dos quilombos e passam a ser comercializadas na forma das chamadas “comidas de rua”, chegando até a mesa da população feirense.
Nos dias atuais, é muito comum, na maioria dos restaurantes da cidade, a típica comida baiana.
O tabuleiro de acarajé está presente em vários pontos do centro da cidade e em praticamente todos os bairros, assim como os alimentos pronto para o consumo, além dos ambulantes vendedores de milho, banana, manga e diversas outras verduras e frutas que são de origem africana.
Outro ponto importante é o caruru de Santa Bárbara, que ocorre sempre no dia 4 de dezembro, no Centro de Abastecimento. Santa Bárbara é considerada padroeira do entreposto comercial.
A data é a comemoração de um evento da igreja católica, mas, pelo sincretismo religioso, é o dia de Iansã, cuja comida nos rituais é o caruru. Este alimento, comida típica baiana, é usado nesse evento junto ao vatapá, pipoca e galinha, na comemoração, comidas genuinamente de origem negra.
SF: Fale um pouco da historia de Ana da Maniçoba, (personagem citado no livro) conte um pouco da sua contribuição, e descreva um pouco da história dela.
M: Dona Ana para Mônia é muito especial, me identifico muito com a história de vida dela como cozinheira, mãe, mulher... Para mim é ela uma grande referência de resistência e perseverança, pois as coisas não foram tão fáceis a todo tempo.
Nascida no distrito de Bomfim de Feira, veio ainda criança para a cidade, foi morar em um abrigo na rua Fróes da Mota, onde cresceu e teve oportunidade de transitar em uma Feira de Santana nobre. Ainda muito jovem foi trabalhar em um restaurante em Salvador, onde atuou durante um período. Voltou à Feira, casou e teve seus dois filhos, Guilherme e Geovani, e também adotou duas meninas que criou como filhas. Sentiu a dificuldade na pele com a separação do seu marido e então, sem muitas opções, passou a colocar em prática os ensinamentos adquiridos nos restaurantes de Salvador, comercializando comida no quintal de casa. Inicialmente eram todos os tipos de comida: feijoada, sarapatel, mininico, carneiro e maniçoba. Logo passou a ter uma carta de clientes, que a apelidaram de Ana da Maniçoba.
– Vai comer aonde, fulano?
– Vou lá para Ana, comer maniçoba.
E assim dona Ana passou ser chamada em toda a cidade de “Ana da Maniçoba”.
Em 1964 ela abriu seu primeiro restaurante, no qual teve muitos clientes da alta sociedade feirense e brasileira, incluindo políticos e artistas globais. Ela estava presente em todos os eventos sociais da cidade. Em 1981 ela abriu o segundo restaurante no Mercado de Arte Popular. Dona Ana relata a sua gratidão à maniçoba e fala: “Devo tudo na minha vida a Deus e a maniçoba. Da maniva eu criei e formei meus filhos e netos e ajudei a criar muitas outras crianças do seio familiar, então, amo a maniçoba!”. Atualmente os seus filhos administram os restaurantes. Dona Ana vai muito pouco ao estabelecimento, pelo fato da pandemia, mas continua fazendo sua maniçoba e abastecendo os restaurantes, o alimento vai transportado pelo seu filho Geovani.
Vejo dona Ana como uma das principais referências no contexto gastronômico feirense. Afinal, com uma história dessa, é, sem sombra de dúvida, inquestionável o reconhecimento das contribuições dessa mulher para a cultura alimentar de Feira de Santana.
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