Os chefs Daniela Narciso e Danilo Rolim catalogaram e testaram incalculáveis receitas ao longo de dois anos de pesquisa.
'Se não é farofa, não é comida', diz autora de livro temático
Chefs Daniela Narciso e Danilo Rolim escreveram 'Farofa', com 82 receitas.
Ela é do litoral de Santa Catarina, ele do interior de São Paulo. Ela está acostumada com a farinha de mandioca, ele cresceu comendo a de milho. Toda vez em que iam cozinhar juntos, em eventos ou um simples almoço, os sócios Daniela Narciso e Danilo Rolim tentavam provar que a sua receita era a melhor.
Em vez de continuar a disputa, eles se juntaram para escrever o livro “Farofa”, mostrando como os preparos podem ser diversos e igualmente saborosos.
Por Marcos Nogueira
A mala com um saco cheio de pó branco deteve a chef Daniela Narciso no aeroporto de Miami por várias horas. “Precisei abrir o pacote e comer três colheradas”, conta ela. Como não morreu nem passou mal, a polícia a liberou para seguir viagem com a carga de farinha de mandioca artesanal, extrafina, típica dos açorianos que povoaram Florianópolis.
“Se não é farofa, não é comida”, diz Daniela em tom brincalhão. Só que a chef fala muito sério. Ela gosta de farofa a ponto de levar farinha brasileira na mala sempre que viaja para o exterior, a pretexto de divulgar nossa gastronomia —“mas sempre com segundas intenções”, admite.
Farofa de bacalhau, do livro "Farofa", de Daniela Narciso e Danilo Rolim - Divulgação
Daniela gosta tanto de farofa que escreveu um livro sobre o tema, em coautoria com o amigo Danilo Rolim, também chef de cozinha.
Intitulado, veja só, “Farofa”, o livro reúne 82 receitas de farofas e assemelhados, mais dezenas de variações possíveis.
A obsessão por farofa, mais do que uma excentricidade da chef, é um traço cultural do Brasil. Ela aparece na alimentação de todas as regiões do país, e há tantas receitas que pode ser complicado encontrar semelhança entre elas.
Assim, o livro “Farofa” começa com a definição de seu objeto de estudo. Apresenta, para depois contestar, o verbete do dicionário Caldas Aulete: “Prato (geralmente acompanhamento) preparado à base de farinha de mandioca frita em gordura, geralmente misturada com outros ingredientes como cebola, ovos, linguiça etc”.
Farinha de mandioca é apenas uma das bases possíveis. Danilo, natural de Itapeva (SP), diz que lá o clima é frio demais para o cultivo de mandioca. “Minha farofa, aquela presente nas mesas de domingo na casa da minha bisavó (...), sempre foi a de milho”, escreve o chef no livro.
Milho e mandioca são a base da alimentação brasileira —e, portanto, da farofa— desde antes da chegada dos portugueses. Mas farofa também evolui.
Tem a farofa de pão torrado (farinha de rosca), como a que a minha mãe, neta de italianos, sempre fez para acompanhar o frango assado. De pinhão de araucária, nas terras altas do Sul e do Sudeste. De piracuí —farinha de peixe seco— na Amazônia.
De biscoito triturado, de quase qualquer coisa.
Daniela e Danilo abrem o leque para estipular o que merece ser chamado de farofa.
Um requisito: o ingrediente primário deve ser farinha ou migalhas previamente cozidas ou torradas. Assim, o preparo da farofa se resume a um refogado rápido.
Quanto à consistência, a farofa deve ser solta, desagregada, com grãos livres —o que requer um grau muito baixo de umidade. Se molhar a farofa, ela muda de nome. “O virado é mais úmido, e o pirão é mais úmido ainda”, afirma Danilo.
Mas os próprios autores mandam às favas a rigidez taxonômica, ao incluir no livro receitas de virado à paulista e de cuscuz, também na sua versão paulista —pelos parâmetros de umidade de Danilo, algo entre o virado e o pirão, compactado e enformado feito bolo, definitivamente não-farofa.
A amplitude da acepção é a maior graça do livro. Com um punhado de receitas, a maioria de execução simples, os autores atribuem identidade farofeira a pratos dificilmente reconhecidos como tal.
O feijão tropeiro, por exemplo. Tendemos a pensar nele como um feijão sem caldo, refogado com torresmos e farinha. Na ótica de Daniela e Danilo, trata-se de uma farofa de feijões. E faz muito sentido.
A mesma coisa com a paçoca de amendoim, guloseima de porta de escola, campeã da memória afetiva de nove entre 10 brasileiros. Sua receita aparece, assim como quem não quer nada, no capítulo dedicado às farofas doces.
Sem cravar o termo “farofa”, mas já erguendo um puxadinho no conceito, o livro reserva uma seção para os primos internacionais da farofa: as migas portuguesas, o stuffing (recheio) dos perus americanos, a salada panzanella, de pedigree italiano. Tudo feito com pão dormido —o mundo rico ainda não descobriu as delícias da farinha de mandioca.
“Farofa” abre espaço ainda para algumas receitas fit, com linhaça, quinoa, amaranto e quetais. Justo.
No Brasil democrático, marombeiro também pode ser farofeiro.
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