E isso quer dizer que a mesma humanidade não vai demonstrar o mesmo interesse pelo “cachorro-quente prensado”, justamente por ele estar compartimentado na dimensão das micropolíticas culturais. Nem por isso esse objeto deixa de ter relevância. Mesmo como plano de fundo, ele vai ser peça integrante da identidade (ou não) das pessoas que compõem sua localidade.
A hegemonia cultural é um composto de ideias dominantes proveniente de uma determinada classe (social, política, cultural ou econômica). Sua essência não é permanente, mas o Estado e seus líderes são resultado desses grupos em constante embate. Isso quer dizer que a hegemonia cultural envolve relações do Estado, da sociedade civil, mecanismos de produção e de estrutura ideológica/jurídica.
A tradição, os saberes, as técnicas e as práticas culinárias, quando somadas, promovem a formação das culturas regionais. Ao redor do país e do mundo, há tendências que fomentam à valorização da cozinha regional como um patrimônio, preservando a culinária tradicional e valorizando raízes culturais dos núcleos que a representam.
Comer é, antes de tudo, um ato simbólico, tradutor de sinais, de reconhecimentos formais, de coloridos e ingredientes, texturas, temperaturas, sentidos e sensações. A ingestão, individualmente, é ato biológico. Comer é ato cultural. Tradutor, também, de povos, nações, civilizações, grupos étnicos, comunidades e famílias.
Sobretudo, o desejo de identificação, ou de priorização, de um ou mais pratos típicos deve partir de acurado estudo no que tange a comunidade cultural e o que ela reflete na produção culinária local ou regional. Nem sempre se é possível estabelecer essa definição de forma pragmática.
Em Maringá esse processo de composição de uma sociedade com várias culturas se repete. São diferentes colônias que preservam suas tradições, como é o caso da japonesa, espanhola, portuguesa, italiana, só para citar algumas para além dos brasileiros de outros estados que também se estabeleceram na cidade. Esse fator étnico tem reflexo direto na gastronomia local.
Não há estudos ou referências bibliográficas que mapeiem a chegada e o aprimoramento do modo de preparo do cachorro-quente em Maringá. Mas jornais do início da década de 1970 veicularam publicidades de estabelecimentos focados nesse prato que já era tratado, popularmente, como “cachorrão”.
Um estabelecimento especifico ganhou notoriedade a partir de 1972. O Ki-kão Lanches funcionou, inicialmente, em um pequeno trailer em frente à praça Raposo Tavares. Posteriormente, foi ampliando e transferido para a avenida Herval esquina com a rua Neo Alves Martins, onde permanece até os dias atuais.
A foto, de janeiro de 1972, não permite identificar se o lanche já era servido de modo prensado | Imagem: Acervo Maringá Histórica
O historiador João Laércio Lopes Leal, que trabalha com o patrimônio histórico maringaense há mais de 30 anos, destaca que o diferencial do lanche local veio do ato de prensar o pão na chapa, além de alguns de seus ingredientes terem sido desenvolvidos com exclusividade.
“Nascido na segunda metade da década de 1980, […], o lanche prensado surgiu do insight do proprietário de um carrinho de cachorro-quente […], em prensar ou chapar o hot-dog, aumentando assim o volume do sanduíche, além de incluir outros ingredientes não presentes no clássico fast food estadunidense. É bom frisar que, Maringá não inventou a prensa, muito menos o cachorro-quente, porém, foi ela a responsável pela fusão desses dois elementos”.
O resultado da equação originou um alimento intensamente consumido nas ruas de Maringá. Alguns números apontam para a existência de quase 200 pontos de comercialização, entre carrinhos móveis e estabelecimentos fixos. Alguns ingredientes se incorporaram, passando a serem indispensáveis no acompanhamento do lanche, caso da maionese verde (com cheiro verde) e da tubaína em garrafa.
Por ter sido criado naquilo que chamamos de tempo presente (por volta de 30 anos), o lanche prensado inscreve-se no conceito de “a moderna tradição maringaense”, onde não é preciso, para historicamente se legitimar, ancorar-se no período de formação da cidade (anos 1930, 40 e 50). O critério cronológico não pode anular as manifestações culturais contemporâneas, como se apenas o antigo fosse passível de preservação.
Nos anos 1980, e com maior destaque para a década seguinte, a prefeitura concedeu centenas de licenças para a abertura de pequenos estabelecimentos que comercializassem os tradicionais cachorros-quentes. Primeiro, conhecidos como “carrocinhas”, os, hoje, “carrinhos” espalham-se pela cidade, diferenciando-se em cardápios e ingredientes, mas mantendo o modo de preparado diferenciado: pão prensado na chapa.
Por conta desse histórico, o “lanche típico” ultrapassa as fronteiras locais, chegando à outras cidades como um elemento da gastronomia tradicional por meio de empreendedores que, vislumbrando uma oportunidade, saíram da cidade com a ideia ou vieram buscar esse objeto como um diferencial para seus negócios.
A 27,5 km da Esplanada dos Ministérios, os moradores de Brasília se refestelam com um cachorrão à maringaense. Em São Paulo, a 4 km da avenida Paulista, paulistanos se fartam com dogões batizados de praça do Peladão, Expoingá e estádio Willie Davids (símbolos de Maringá). A duas quadras do mar, turistas e catarinenses há cinco anos se regalam com prensados maringaenses. Em Astorga, Mandaguaçu, Floresta e Iguaraçu também é possível encontrar, pelas calçadas, lanches que se gabam de reproduzir o famoso cachorrão de Maringá.
A medida localizada na gastronomia maringaense pode até se justificar, mas a gestão cultural requere ações que se desdobrem a partir dessa institucionalização. Ou seja, a intervenção de micropolítica cultural aplicada ao “cachorro-quente prensado” precisa ser amplificada para outros níveis, pois não haverá contentamento somente com essa dimensão. Isso significa que as micropolíticas fazem parte da base e há que se construir algo sobre ela.
Houve quem, no calor da hora, criticou que o “cachorro-quente prensado” não possuía carga cultural que justificasse tal ação. Que seu modo preparado era simplista e que os seus ingredientes eram industrializados.
Embora possa existir um produto factível de atenção da micropolítica cultural na gastronomia de Maringá, é nas relações que está alicerçada sua essência mais significativa e que justifica tal intervenção. É no imaterialismo, na carga cultural que sua simplicidade sustenta a cotidianidade dos maringaenses (do micro para o macro). Sua transversalidade entre as diferentes classes-sociais, a facilidade de encontrá-lo pelas vias e o reconhecimento popular do termo “cachorrão”, são elementos para além do objeto. Esses são seus tentáculos que alcançam outras esferas, agregando valor intangível e estabelecendo o sentido de pertencimento.
Em não havendo a compreensão das micropolíticas culturais, existirá somente a heterogeneidade que resvalará em ações focadas única, e exclusivamente, nas grandes políticas, nas macropolíticas culturais. Parafraseando George Orwell, embora umas sejam mais importantes do que outras, todas são importantes.
Fonte: Jornal de Maringá
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