VOCÊ SABIA QUE, NA NIGÉRIA, O AKARÁ-BOLINHO QUE DEU ORIGEM AO NOSSO ACARAJÉ- NÃO É FRITO NO AZEITE DE DENDÊ?
Na culinária tradicional iorubá, o akará é preparado com feijão-fradinho, cebola e sal, frito geralmente em óleos vegetais neutros, como o de amendoim ou algodão.
Foi no Brasil, mais precisamente na Bahia, que esse bolinho ganhou uma nova vida: passou a ser frito no azeite de dendê, recheado com preparações como vatapá e caruru, e se tornou uma das expressões mais emblemáticas da culinária afro-brasileira.
Esse gesto aparentemente simples — trocar o óleo e incluir novos ingredientes — reflete muito mais do que sabor: revela um processo profundo de reinvenção cultural, resistência e afirmação de identidade.
Neste vídeo da criadora de conteúdo @l_assiette_228_229 no Instagram, ela apresenta o processo tradicional de preparação do akará, bolinho de feijão-fradinho que deu origem ao acarajé brasileiro.
Como é feito o akará na tradição africana
O akará é um prato típico da culinária da África Ocidental, especialmente popular na Nigéria, Benin e Togo. É preparado a partir de feijão-fradinho descascado e moído, misturado com cebola e pimenta, formando uma massa que é frita em óleo vegetal até dourar. Diferentemente do acarajé brasileiro, o akará africano tradicionalmente não utiliza azeite de dendê no preparo.
Significado cultural
Na Nigéria, o akará é consumido amplamente como café da manhã ou lanche, frequentemente acompanhado de pap (mingau de milho) ou pão. É um alimento de rua comum e também presente em celebrações e rituais religiosos, simbolizando fartura e comunidade.
Na Nigéria, o bolinho semelhante ao acarajé é chamado de akará, e geralmente não é frito no dendê (óleo de palma vermelho) como no Brasil. Isso se deve a fatores culturais, de sabor e de uso culinário regional
O sabor forte e marcante do dendê não é o padrão para todas as receitas na Nigéria. Lá, ele é usado mais em pratos como sopas (ex: egusi, ogbono) ou ensopados, não tanto em frituras.
Quando africanos escravizados chegaram ao Brasil, especialmente os iorubás, adaptaram a receita do akara ao que tinham disponível aqui — e o dendê brasileiro, trazido pelos portugueses de suas colônias africanas (como Angola), acabou marcando profundamente a culinária afro-brasileira, especialmente na Bahia.
O processo de recriação do akará africano no acarajé baiano é um dos exemplos mais potentes de como a culinária pode ser um espaço de resistência, adaptação e afirmação identitária na diáspora africana.
Na Bahia, o acarajé foi ressignificado como um alimento sagrado ligado ao candomblé, e o dendê se tornou essencial não só pelo sabor, mas pela conexão espiritual com os orixás.
Ou seja, o uso do dendê no acarajé é uma invenção afro-baiana, com raízes africanas, mas também com uma identidade própria forjada na diáspora.
Esse processo ocorreu principalmente entre os séculos XVIII e XIX, quando mulheres africanas escravizadas — muitas da etnia iorubá (ou nagô, no Brasil) — trouxeram seus saberes culinários e os adaptaram ao contexto brasileiro.
O processo de recriação do akará em acarajé na Bahia:
Adaptação de ingredientes e técnicas:
Na África, o akará era feito de feijão-fradinho, temperado com cebola e sal, e frito geralmente em óleo vegetal (amendoim, milho, algodão ou mamona)
Na Bahia, o prato foi adaptado:
Usou-se o azeite de dendê (óleo de palma vermelho, não clarificado), que imprime cor, sabor e valor simbólico.
Começou a ser recheado com preparos locais: vatapá, caruru, camarão seco e salada, criando o formato típico do acarajé baiano.
Incorporou ingredientes indígenas (como o dendê amazônico) e portugueses (como o pão no vatapá).
b) Transformação simbólica:
O acarajé tornou-se um alimento sagrado no Candomblé, especialmente ligado à orixá Iansã (Oyá), a dona dos ventos e tempestades.
Era (e ainda é) usado em ofertas rituais, mas também passou a ser vendido nas ruas como forma de sustento das baianas de acarajé, muitas delas filhas de santo.
c) Ocupação de espaços públicos:
A venda de acarajé por mulheres negras foi uma forma de resistência econômica e política, num contexto de racismo estrutural e exclusão social.
As baianas afirmaram sua presença nos espaços urbanos, com seus tabuleiros, roupas brancas e turbantes — símbolos da cultura afro-baiana.
Impactos dessa criação:
a) Culinária como território de identidade:
O acarajé mostra que a culinária não é só técnica, mas memória viva, ligada a espiritualidade, território, corpo, economia e comunidade. Ele é uma comida que narra a história da diáspora africana no Brasil.
b) Valorização da cultura afrodescendente:
A presença do acarajé ajudou a legitimar e afirmar a identidade afro-brasileira, especialmente na Bahia. Ele se tornou patrimônio cultural imaterial brasileiro (IPHAN, 2004), e sua venda pelas baianas é protegida como expressão cultural.
c) Gênero e autonomia feminina:
As baianas de acarajé são figuras centrais da economia informal afro-brasileira, tendo historicamente exercido poder econômico, religioso e social em suas comunidades.
O que o acarajé reflete enquanto criação culinária e identidade:
Mistura e ancestralidade: É uma síntese da criatividade negra diante do exílio e da dor, onde os ingredientes se tornam linguagem de memória.
Espaço de resistência: O acarajé reflete a luta por manter vivas tradições africanas num país que tentou apagar essas raízes.
Afirmação coletiva: É um símbolo da identidade afro-baiana, ligando corpo, fé, território e cultura numa só expressão sensorial e espiritual.
Essa recriação do akará em acarajé oferece aos jovens cozinheir@s lições preciosas, que vão muito além da técnica:
Cozinhar é criar com raízes
A transformação do akará africano em acarajé nos ensina que inovar não é apagar a origem, mas honrá-la e adaptá-la. É possível ser criativo respeitando a ancestralidade — cada prato carrega uma história, um território, um povo.
> Lição: Conheça suas raízes antes de reinventá-las.
A cozinha é linguagem, não só receita
O acarajé não é só comida: é religião, memória, resistência, economia, afeto. Ele mostra que a culinária é uma forma de comunicação e expressão política e cultural.
> Lição: Cozinhar também é contar histórias, afirmar identidades e levantar bandeiras.
Valorize os saberes populares e ancestrais
As mulheres negras que criaram e sustentaram o acarajé como tradição o fizeram com saberes não acadêmicos, transmitidos oralmente, com o corpo, com o tempo e com a fé. A cozinha não está só nos livros: está nas mãos das mestras e mestres do cotidiano.
> Lição: Aprender a cozinhar é também saber escutar quem veio antes — com respeito e humildade.
O território importa
A inclusão do dendê, do camarão seco, do vatapá e do caruru fala da influência do território baiano sobre a culinária afro-brasileira. Ingredientes e práticas locais moldam sabores e tradições.
> Lição: Valorize os ingredientes locais e entenda o ambiente onde você cozinha.
Cozinhar é também resistir
O acarajé virou símbolo de resistência: das religiões afro-brasileiras, das mulheres negras, da cultura popular. Mesmo sendo marginalizado por séculos, ele permaneceu, porque alimentar também é uma forma de lutar.
> Lição: Sua cozinha pode (e deve) ter um papel no mundo — seja ele cultural, social ou político.
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