O QUE FAZ UM CAFÉ SER " CAFÉ"? QUANDO O CAFÉ NÃO É CAFÉ, MAS É...
Imagine acordar e, em vez de moer grãos de Coffea, preparar uma infusão de casca de abacate... e descobrir um sabor que lembra café.
Do grão ao quintal, existe um universo de bebidas que se dizem “café” — mesmo sem conter o famoso grão. E esse fenômeno nos convida a uma pergunta essencial: o que faz um café ser café?
O que está (de fato) na xícara
Ao pensar em café, muitas vezes nos limitamos à imagem da bebida quente, do grão torrado, do aroma que desperta os sentidos. Mas um café é, antes de tudo, um território afetivo. É o encontro das mãos que plantam, colhem, secam e torram, com as histórias que circulam em torno de uma xícara.
Café é uma pausa no cotidiano, elo entre gerações, convite à escuta. Nas cozinhas da roça ou nas esquinas urbanas, ele marca o início das conversas, sela pactos, consola silêncios.
Cafés que não vêm do grão
Em muitas comunidades tradicionais, o “café” é feito de sementes, folhas, cascas ou raízes torradas — preparos que aquecem o corpo, despertam o espírito e carregam memórias de um tempo em que a terra ditava o sabor das manhãs.
Chamados de café de semente de jaca, café de folha de pitanga, café de caroço de abacate ou de melancia, de algaroba, café de milho, de semente de quiabo, e até de chicória, essas bebidas expressam a resistência e a criatividade alimentar de comunidades que transformam escassez em potência, e o quintal em farmácia e despensa.
Café fake? Nem tanto.
Recentemente, uma matéria chamou atenção ao tratar da adulteração do café vendido no mercado — o chamado “café fake”, produzido a partir de folhas ou cascas do próprio cafeeiro (Coffea spp.). Embora tenha ganhado nova visibilidade entre baristas experimentais e cafeterias especializadas, esse tipo de preparo está longe de ser novidade. Ele tem raízes antigas e é conhecido há gerações em diversas comunidades produtoras, que historicamente aproveitam todas as partes da planta.
As folhas são secas e infundidas, resultando numa bebida delicada, que lembra o chá, mas traz o amargor e o aroma sutil da planta do café. Carrega propriedades antioxidantes, uma leve presença de cafeína e um novo campo de interesse para a gastronomia contemporânea.
Cada “café” carrega um território. Há quem torre sementes de melancia ou abóbora e as moa no pilão. Outros usam folhas aromáticas, como a do pau-pretinho ou da pitanga, secas ao sol e fervidas com cuidado. Essas bebidas não contêm cafeína, mas são ricas em afeto e saberes. Muitas vezes, eram alternativas durante tempos de pobreza ou escassez, mas hoje são revalorizadas como parte de uma culinária ancestral que respeita o ciclo das plantas e se beneficia da inventividade popular.
Valorizar esses cafés é reconhecer que a bebida quente que nos acolhe pela manhã pode ser também um elo com os saberes das mulheres, com os quintais de antigamente, com a terra e suas infinitas possibilidades.
É reabrir o olhar para o que é “café”, e entender que o sabor também mora nas histórias.
O café vai além do produto que geralmente é conhecido por esse nome. É cultura, é forma de estar junto. Ele é a resistência dos povos que sustentam sua traduções com práticas ancestrais e conhecimentos que atravessam os tempos a partir da oralidade.
É também espaço de disputa – entre a lógica do agronegócio e o cuidado dos pequenos produtores.
Portanto, o que faz um café ser café não é apenas o grão, mas o universo que o envolve: a terra, as mãos que o cultivam, os modos de fazer, os afetos e as histórias. É também o fato de que cada uma dessas bebidas recebe o nome de Café, o que legitima seu consumo e, sobretudo, valoriza aquilo que não se embala — a experiência viva que cada xícara carrega."
Café como cultura e símbolo nacional
O café esteve no centro da formação econômica do Brasil, especialmente entre os séculos XIX e XX, como base da exportação e símbolo de riqueza. No entanto, sua centralidade simbólica vai muito além da elite dos salões. O povo apropriou o café como ritual cotidiano: na garrafa térmica da vizinha, no coador de pano, no fogão à lenha.
A história do café brasileiro também é marcada pela violência da monocultura e pelo protagonismo invisibilizado de pessoas negras e indígenas, que sustentaram lavouras, torrefações e modos de preparo tradicionais.
Diversidade de cafés pelo Brasil
A identidade do café no Brasil é múltipla, regional e afetiva:
Café do sertão: com rapadura, passado no pano, tomado entre os intervalos do roçado.
Café na Amazônia: com farinha ou servido com frutas, em contextos extrativistas e ribeirinhos.
Café das quebradas: feito no improviso, símbolo de resistência urbana e partilha comunitária.
Café das aldeias e quilombos: misturado a folhas, raízes, servido como forma de benzimento ou cura.
Afeto, ritual e economia da invenção
Em tempos de escassez, a necessidade ensinou a substituir o grão. Sementes de melancia, caroços de açaí ou de abóbora, raízes, cascas e folhas foram torradas e infundidas com engenho e afeto. Muitos desses “cafés” não contêm cafeína, mas são ricos em saberes ancestrais, biodiversidade e memória.
O uso estratégico do nome “café” comunica cor, aroma, efeito e acolhimento. Valer esses cafés é reconhecer a culinária como lugar de invenção e sobrevivência, mas também de identidade e pertença.
Entre o sabor e o símbolo: por que seguimos chamando de “café”?
Chamamos de “café” mesmo quando não há grão de café. Por quê?
Porque o nome já não diz apenas o que está na xícara, mas o que ela representa. O café é o gesto de aquecer o corpo, reunir em torno da mesa, começar o dia ou encerrar uma visita. É símbolo de acolhimento, pausa, intimidade.
Nas roças e quintais do Brasil profundo, onde nem sempre há dinheiro para comprar o grão, o café se reinventa. Misturam-se raízes, folhas, cascas. E ainda assim, ao servir, se diz: “Aceita um cafezinho?”
Esse nome persiste não por engano, mas por afeto. A palavra “café” guarda um lugar simbólico que transcende o sabor original. Mesmo que a bebida tenha gosto de folha ou fruta torrada, ela continua carregando o mesmo gesto ancestral de oferecer e partilhar.
Seguir chamando de “café” é resistir com poesia. É afirmar que o valor das coisas não está apenas em sua matéria, mas naquilo que evocam: memória, pertencimento, cuidado.
Por fim, chamar de café o que vem do abacate, da jaca ou da pitanga não é erro — é sabedoria. É nomear com o coração o que a ciência ainda tenta classificar. É reconhecer que, no Brasil profundo, o café é menos uma planta e mais um rito.
É a xícara que aquece o corpo e a memória. É a pausa que reata vínculos, a bebida que circula saberes, o cheiro que anuncia afeto.
Em tempos de monoculturas e apagamentos, esses cafés diversos nos lembram que há muitas formas de cultivar o calor da vida. E que, muitas vezes, é nas margens — nas cascas, nos quintais, nos nomes reinventados — que mora o centro da nossa cultura.
Porque café, afinal, é tudo aquilo que, servido com alma, aproxima.
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Café: muito além do grão
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