PERMANÊNCIA, DISSEMINAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DAS CULINÁRIAS AFRICANAS NA DIÁSPORA

A travessia forçada dos povos africanos para as Américas, resultado do sistema escravagista colonial, não trouxe apenas corpos, mas também saberes, cosmovisões e práticas alimentares que, ao longo dos séculos, se tornaram pilares das culinárias afro-diaspóricas. Esses saberes, longe de serem fragmentos do passado, são tecnologias sociais de resistência, reinvenção e permanência.

Por meio de técnicas, ingredientes ancestrais e saberes transmitidos oralmente, eles resgatam memórias, fortalecem identidades e constroem novas perspectivas para a gastronomia global, mostrando que a cozinha é também um território de luta, pertencimento e afirmação cultural.

Atravessias, Saberes e Sabores

Ao serem arrancados de seus territórios, homens e mulheres africanos levaram consigo práticas culinárias profundamente conectadas à sua relação com a terra, com o sagrado e com a coletividade. Na diáspora, essas práticas encontraram novos territórios, outras espécies vegetais e animais, e condições adversas impostas pela escravidão, o que exigiu adaptações, mas nunca a completa ruptura.

A permanência dos saberes culinários africanos nas Américas, especialmente no Brasil, se expressa tanto na materialidade dos pratos quanto nas técnicas, nos modos de fazer e nas relações sociais que esses alimentos produzem.

O Cuscuz: A Lógica do Grão Agregado

O cuscuz é um exemplo emblemático desse processo. De origem norte-africana, preparado tradicionalmente com sêmola de trigo, ele carrega uma lógica ancestral: o cozimento no vapor, a aglutinação de grãos e sua centralidade na alimentação diária.

Na diáspora brasileira, o cuscuz se ressignifica ao encontrar o milho e, em algumas regiões, o arroz. Permanece, no entanto, como alimento agregador, presente nos cafés da manhã, nas mesas comunitárias, nas festas e nas conversas do cotidiano. Essa permanência traduz não apenas a memória do prato, mas também da técnica e da ideia de partilha.

Acarajé: Corpo, Espiritualidade e Economia

Poucos pratos traduzem de forma tão potente a conexão entre culinária, espiritualidade e resistência quanto o acarajé. Originário do oeste africano, especialmente das culturas iorubás, o akará é preparado com feijão-fradinho, temperos e frito no azeite de dendê.

No Brasil, o acarajé mantém sua função como oferenda aos orixás — em especial a Iansã —, carregando fundamentos sagrados e vínculos espirituais. Paralelamente, se torna também fonte de autonomia econômica, protagonizado pelas baianas, que transformaram o tabuleiro em espaço de sustento, resistência e afirmação cultural. O acarajé é alimento, mas é também território, corpo e história.

Ostras e Saberes das Águas

Nas comunidades costeiras do Recôncavo Baiano, o uso das ostras e de outros mariscos traduz a sabedoria ancestral das populações africanas, que sempre cultivaram uma relação de respeito e manejo sustentável das águas.

O preparo das ostras cozidas, dos ensopados e das moquecas revela técnicas que articulam não só o aproveitamento dos recursos naturais, mas também a leitura dos ciclos das marés, o domínio dos tempos e a valorização dos saberes comunitários. As ostras, nesse contexto, não são apenas alimento, mas expressão de uma relação cosmológica com o território.

A Farofa: Técnica, Sabor e Resistência

Embora a mandioca seja de origem ameríndia, as populações africanas, ao chegar nas Américas, rapidamente incorporaram seu uso às suas práticas culinárias, aplicando nela lógicas ancestrais de secagem, torrefação e conservação de alimentos.

A farofa surge como uma técnica versátil, que além de agregar sabor e textura, permite a conservação dos alimentos. Presente em quase todas as mesas brasileiras, ela traduz essa capacidade de adaptação e reinvenção, mesclando saberes indígenas e africanos em um prato que se tornou símbolo da brasilidade.

Herança Viva e Futuro Ancestral

A culinária afro-diaspórica é herança, mas também é futuro. Ela se reinventa cotidianamente, mantendo vivos os fundamentos trazidos da África, sem abrir mão da criatividade e da adaptação às realidades locais.

O cuscuz, o acarajé, as ostras cozidas e a farofa não são apenas pratos: são tecnologias sociais, espirituais e afetivas. São expressões de um povo que, mesmo diante da violência histórica, segue construindo mundos, nutrindo corpos e fortalecendo comunidades.

Preservar, valorizar e divulgar essas culinárias é também um ato político e um compromisso com a reparação histórica, com a dignidade e com a soberania alimentar dos povos afrodescendentes nas Américas.

A Nova Tradução das Culinárias Africanas na França

O movimento contemporâneo dos chefs africanos na França representa uma tradução sofisticada, politizada e afetiva das culinárias africanas na diáspora, em diálogo com as dinâmicas do Atlântico Negro, da memória e da decolonização.

Como os novos chefs africanos na França traduzem esse movimento?

Culinária como Ato Político e de Resistência

Esses chefs usam a cozinha como ferramenta de combate ao racismo, ao exotismo e à marginalização das cozinhas africanas, que durante muito tempo foram vistas como “menores”, folclorizadas ou relegadas às periferias culturais. Ao ocupar espaços de prestígio gastronômico, eles reivindicam a dignidade, a sofisticação e a complexidade das culinárias do continente e da diáspora.

Desconstrução do Olhar Colonial

Através de narrativas, discursos e práticas, esses chefs questionam a colonialidade presente no olhar europeu sobre a África. Eles rejeitam a simplificação da culinária africana como “picante, rústica e exótica” e passam a apresentá-la como diversa, técnica, elegante e inovadora.

Técnicas e Narrativas Contemporâneas

Eles combinam técnicas contemporâneas de alta cozinha, fermentações, texturas modernas e apresentação refinada, sem perder o fio da memória ancestral. Elementos como o milho (cuscuz), o dendê, o grão-de-bico, a mandioca, o fonio, o amendoim, as ostras e as farinhas aparecem recontextualizados, mas mantendo seu lastro cultural e espiritual.

Recuperação e Atualização dos Arquivos Culinários Africanos

Assim como os afro-americanos fazem nos EUA, esses chefs trabalham no resgate dos sistemas alimentares africanos pré-coloniais. Muitos investigam práticas quase apagadas pela colonização, como técnicas de defumação, fermentação, uso de folhas, sementes e métodos de cozimento ancestrais.

Prática de Cozinha Diaspórica Consciente

Há um entendimento profundo de que cozinhar, na diáspora, é um gesto de articulação entre África, Caribe, Brasil e outras margens do Atlântico. A comida se torna uma ponte, onde pratos dialogam com a memória do tráfico transatlântico e com as resistências culturais negras.

Exemplos de Chefs Africanos na França

Pierre Thiam (Senegal)

Embora more parte do tempo nos EUA, é uma referência constante na Europa. Ele é um dos maiores defensores do fonio, cereal ancestral africano, e trabalha para inserir produtos africanos nos circuitos internacionais da culinária, sempre pautado pela valorização da agricultura e dos saberes locais.

Mory Sacko (França – Mali/Senegal)

Chef do restaurante MoSuke, em Paris, que conquistou uma estrela Michelin. Sua cozinha mistura referências africanas, japonesas e francesas, com pratos como o frango yassa reinterpretado, ostras grelhadas com molho de amendoim e condimentos de influência senegalesa. Sacko fala abertamente sobre a responsabilidade de representar a cozinha africana como uma cozinha de excelência e não de estereótipos.

Georgiana Viou (Benim)

Chef do restaurante Rouge, no sul da França, também premiada com estrela Michelin. Sua cozinha é uma celebração dos sabores do Benim, utilizando técnicas francesas, mas mantendo os fundamentos dos sabores africanos — como molhos de castanha, farofas e raízes.

Asta Soko (Costa do Marfim)

Chef que trabalha tanto na cena parisiense como em projetos itinerantes, traz uma cozinha que se articula entre a tradição das mulheres marfinenses e a alta gastronomia francesa, com pratos baseados em inhame, banana da terra, grãos e pescados.

Tradução Simbólica e Política

O Tabuleiro vira Mesa de Estrela Michelin: Assim como as baianas de acarajé dominam a rua como território de resistência, esses chefs transformam a mesa da alta gastronomia em um novo território de afirmação negra.

Da Margem ao Centro: Eles rompem com a lógica colonial de que a culinária africana deve permanecer marginal, transformando-a em objeto de desejo, de sofisticação e de centralidade cultural.

Cozinha como Arquivo Vivo: Cada prato carrega não só técnicas, mas histórias de diáspora, de sofrimento, de resistência e de reinvenção. A cozinha se torna uma linguagem de reconexão com as linhagens ancestrais.

Aqui estão algumas referências de estudiosos afro-americanos que são fundamentais para pensar as diásporas alimentares, especialmente no contexto das Américas.

Eles ajudam a aprofundar a reflexão sobre os processos de permanência, resistência e desenvolvimento das culinárias africanas na diáspora.

Estudos Afro-Americanos sobre Diásporas Alimentares

1. Jessica B. Harris – High on the Hog: A Culinary Journey from Africa to America (2011)

Uma das maiores referências sobre culinária afro-diaspórica. Harris traça a trajetória dos alimentos, técnicas e práticas culinárias africanas desde o continente até os EUA, mostrando como esses saberes foram fundamentais para a construção da culinária americana. Seu trabalho aborda não só ingredientes, mas também a centralidade das mulheres negras, das cozinhas comunitárias e das relações entre comida, identidade e resistência.

Diálogo com o texto: O percurso de alimentos como o feijão-fradinho (presente no acarajé) e técnicas como a fritura em óleo de palma são destacados como práticas de resistência e continuidade cultural na diáspora.

2. Michael W. Twitty – The Cooking Gene: A Journey Through African American Culinary History in the Old South (2017)

Twitty é um historiador da culinária afro-americana que une sua pesquisa acadêmica com sua vivência como homem negro, judeu e ativista. Em The Cooking Gene, ele investiga suas raízes ancestrais através da comida, abordando a construção da culinária do sul dos Estados Unidos a partir dos saberes africanos, indígenas e europeus.

Conceito central: A culinária como marcador de identidade e ferramenta de reparação histórica. Twitty defende que cozinhar é um ato político e espiritual, que resgata a memória e a dignidade dos povos escravizados.

3. Frederick Douglass Opie – Hog and Hominy: Soul Food from Africa to America (2008)

Opie explora como as práticas alimentares africanas foram fundamentais para o desenvolvimento da Soul Food, a culinária afro-americana. O autor traça uma linha histórica desde os sistemas alimentares africanos, passando pela escravidão até a formação das cozinhas afro-americanas contemporâneas.

Diálogo com o texto: Assim como o acarajé no Brasil, pratos como hush puppies, fried catfish e okra stew são símbolos da capacidade de adaptação e resistência dos povos africanos na diáspora.

4. Psyche Williams-Forson – Building Houses Out of Chicken Legs: Black Women, Food, and Power (2006)

Esse livro traz uma análise poderosa sobre como as mulheres negras, no contexto afro-americano, transformaram a comida em instrumento de poder econômico, autonomia e resistência cultural. Ela discute a venda de alimentos — como frango frito, doces e tortas — como prática que gera sustento e mantém vivos os saberes ancestrais.

Diálogo com o texto: A conexão é direta com as baianas de acarajé no Brasil, que também transformaram o tabuleiro em território de autonomia econômica e afirmação cultural, além de espaço de espiritualidade.

5. Marcia Chatelain – Franchise: The Golden Arches in Black America (2020)

Embora não trate diretamente da culinária afro-diaspórica tradicional, Chatelain analisa como, no século XX, a relação da comunidade negra americana com a alimentação também passou pela apropriação dos espaços comerciais, como redes de fast food. Ela revela como as comunidades negras adaptaram esses espaços como formas de geração de riqueza, ainda que dentro dos limites impostos pelo racismo estrutural.

Diálogo crítico: Esse estudo permite refletir como, tanto no Brasil quanto nos EUA, a luta pela autonomia econômica através da comida se transforma, adapta e, muitas vezes, é tensionada pelos sistemas econômicos e raciais.

Conceitos Afro-Americanos para Fortalecer o Texto

Foodways (Caminhos da Comida): Termo usado por muitos desses autores para pensar a comida não apenas como sustento, mas como um conjunto de práticas culturais, sociais, econômicas e espirituais que viajam com os povos em diáspora.

Culinary Resistance (Resistência Culinária): A ideia de que cozinhar, manter receitas, adaptar técnicas e transmitir saberes são atos de resistência cultural e política frente ao apagamento colonial e racista.

Comida como Arquivo Vivo: A cozinha é um espaço de preservação da memória, um arquivo de práticas ancestrais que sobrevive ao racismo, à violência e ao deslocamento forçado.

Síntese para Dialogar com o Artigo

Esses autores afro-americanos ajudam a entender que o cuscuz, o acarajé, as ostras cozidas e a farofa não são apenas expressões brasileiras da diáspora, mas fazem parte de um fenômeno transatlântico. As práticas de cozinhar, vender e partilhar comida carregam memórias, resistências e tecnologias sociais que se repetem — adaptadas às realidades locais — em todo o Atlântico Negro.

Incluir essas referências no artigo amplia o olhar, conecta o Brasil a outras experiências da diáspora africana nas Américas e reforça a centralidade da culinária como território de resistência, ancestralidade e futuro.

BAHIA E BRASIL DIASPORICO

O olhar antropofágico brasileiro, profundamente atravessado pela experiência de um país que se constitui na encruzilhada de matrizes africanas, indígenas e europeias, oferece uma contribuição singular para compreender os processos de tradução e ressignificação das culinárias diaspóricas no mundo. Ao contrário de uma abordagem que busca homogeneizar ou hierarquizar saberes alimentares, a antropologia da alimentação no Brasil tem valorizado as práticas culinárias como expressões de resistência, de territorialidade e de construção de identidades.

Nesse contexto, a inclusão das culinárias afro-indígenas no debate sobre as diásporas alimentares amplia as fronteiras de entendimento, revelando que os trânsitos forçados de corpos, saberes e ingredientes não ocorreram apenas entre África e Europa, mas também dialogaram profundamente com os territórios originários das Américas. A mandioca, as farofas, os usos das folhas, dos peixes, dos mariscos e das técnicas de defumação, por exemplo, revelam uma confluência de saberes que são, ao mesmo tempo, africanos, indígenas e afro-diaspóricos.

Ao lançar esse olhar, o Brasil contribui com uma perspectiva que rompe com os binarismos coloniais entre tradição e modernidade, ou entre cozinha popular e alta gastronomia. Reconhece-se que as culinárias afro-indígenas são, por si, sofisticadas, complexas e portadoras de tecnologias sociais ancestrais. Essa visão permite dialogar criticamente com os movimentos dos chefs africanos na França, apontando caminhos possíveis para uma gastronomia decolonial, que não apenas valorize os sabores e os ingredientes, mas que também reconheça as epistemologias alimentares negras e indígenas como parte fundamental da história e do futuro da alimentação no mundo.



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