CULINÁRIA BANTU: ENTRE O SAGRADO E O COOTIDIANO
A culinária Bantu, enraizada nas diversas nações que formam o grupo etnolinguístico Bantu – presente em grande parte da África Central e Austral e com forte influência nas diásporas africanas nas Américas – é uma expressão profunda de espiritualidade, memória e território.
Sua força não está apenas nos ingredientes e preparos, mas no modo como a alimentação estrutura relações, organiza o tempo e sustenta vínculos entre os mundos visível e invisível.
No universo espiritual das tradições Bantu, os Nkisi não são deuses distantes, mas forças vivas que habitam os elementos da natureza – águas, árvores, pedras, metais, raízes – e se manifestam por meio de rituais, oferendas e cantos. Essa espiritualidade é profundamente enraizada no princípio de que a natureza é viva, consciente e comunicante. Por isso, ao ofertar uma comida sagrada (Makuriá Nzambiri), não se está apenas alimentando uma força abstrata, mas dialogando com um ser presente e atuante no mundo.
Nesse contexto, há uma presença marcante do antropomorfismo – a atribuição de características humanas a forças da natureza. Não no sentido de reduzir os Nkisi à forma humana, mas de reconhecer que eles possuem intenções, emoções, vontades e memórias, assim como nós. Uma pedra pode “falar”, uma árvore pode “ensinar”, uma água pode “curar” ou “rejeitar”. Tudo depende da forma como se aproxima, com que intenção, com que pureza.
As comidas sagradas não são apenas alimentos — são corpos simbólicos, preparados com elementos que possuem ressonância direta com os Nkisi a quem se destinam. Cada ingrediente carrega uma função: pode trazer frescor, força, equilíbrio ou fogo. Pode ser um pedido de cura, uma oferenda de gratidão ou um gesto de reparação espiritual. Os temperos, os modos de preparo, os recipientes naturais — como cabaças, folhas ou barro — tudo compõe uma linguagem ritual.
Práticas culturais e diversidade biológica estão profundamente entrelaçadas. A continuidade de sistemas de conhecimento únicos e sofisticados — relacionados à coleta, manejo, cultivo e preparo de alimentos na natureza — depende da preservação tanto da biodiversidade quanto das paisagens culturais.
Contudo, o conhecimento tradicional e a diversidade biológica enfrentam ameaças crescentes, muitas vezes provocadas pelas mesmas forças: a agricultura industrial e a consequente apropriação de terras, o desmatamento, a mineração, a extração de petróleo, além das pressões econômicas e culturais impostas pela globalização. Ainda assim, os povos têm historicamente adaptado seus sistemas alimentares às mudanças — incorporando novos ingredientes e práticas, enquanto deixam outros para trás.
Nas tradições espirituais dos povos Bantu, os Nkisi não são meras representações simbólicas da natureza — são a própria natureza em sua forma encantada e ativa. Esse entendimento se aproxima do antropomorfismo, mas carrega a sutileza própria das cosmologias africanas: os elementos naturais não apenas se assemelham aos humanos — eles compartilham com os humanos uma consciência ancestral, uma sensibilidade, uma capacidade de agir e de se comunicar.
O antropomorfismo bantu não reduz as forças naturais à forma humana como em muitas representações ocidentais. Pelo contrário, ele amplia o entendimento do que é ser "gente". Um rio pode carregar tristeza. Uma pedra pode guardar segredos. Uma raiz pode proteger como uma mãe. Em vez de tornar a natureza humana, essa visão torna o humano parte da natureza, dissolvendo as fronteiras entre corpo, espírito e território.
Pierre Verger, em seus estudos sobre as religiões de matriz africana, foi um dos primeiros a alertar para os riscos de traduzir os conceitos africanos segundo categorias ocidentais, muitas vezes empobrecendo sua complexidade.
Ele criticava o modo como o pensamento europeu insistia em organizar os orixás, voduns ou minkisis como “deuses” com biografias fixas, como se fossem personagens mitológicos do panteão greco-romano. Para Verger, essa tendência era fruto de uma tentativa de “explicar” o inefável segundo lógicas coloniais, esquecendo que o sagrado africano é profundamente relacional, mutável e situado.
No caso dos Nkisi, essa crítica é ainda mais relevante. Ao tentar encaixá-los em modelos antropomorfizados rígidos – com hierarquias, papéis sociais e moralidades humanas – corre-se o risco de negar sua essência elemental. Um Nkisi não é um “espírito da floresta” como nas fábulas; ele é a própria floresta, em sua potência espiritual e material.
Verger nos convida, assim, a escutar os povos africanos e afro-diaspóricos com suas próprias categorias, respeitando a linguagem simbólica, os modos de transmissão oral e a riqueza da experiência ritual.
O antropomorfismo bantu, longe de ser uma invenção, é uma forma de expressar a alma da natureza em códigos compreensíveis à sensibilidade humana, sem submetê-la ao racionalismo ocidental.
Ao se relacionar com os Nkisi, os povos Bantu reconhecem que a natureza não é separada da humanidade, mas sim um espelho ampliado do que somos. Assim como nós sentimos e desejamos, os encantados também sentem, aceitam, recusam, choram, vibram e respondem. Este é o fundamento da vida em comunidade com a natureza: a ética do cuidado, do respeito e da reciprocidade com tudo o que vive.
Na cultura dos povos Bantu, ao contrário da tradição Nagô-Yorubá, não se utiliza louça ou utensílios de origem europeia nas práticas rituais e nos momentos sagrados da alimentação. Isso não se trata apenas de uma escolha estética ou funcional, mas de uma afirmação filosófica e ancestral: os elementos naturais são os verdadeiros portadores de axé (energia vital), pois estão em harmonia com o ciclo da vida e da terra.
Antes mesmo da introdução da cerâmica esmaltada e da louça trazida pelos colonizadores, os povos Bantu já tinham formas próprias de servir e consagrar alimentos.
As comidas sagradas dos Nkisi, conhecidas como Makuriá Nzambiri, são tradicionalmente apresentadas em cabaças (makaka), tigelas de barro cru ou cozido (makungu), recipientes de madeira entalhada ou diretamente sobre folhas. Entre as folhas mais utilizadas estão:
Folha de mamona branca (baiki mundele): considerada sagrada, por sua textura e capacidade de envolver e conservar o alimento.
Folha de bananeira (dihonjo): utilizada em diversas culturas africanas e afro-diaspóricas para cozinhar, embalar e servir alimentos. A folha é símbolo de fartura, proteção e respeito ao alimento ofertado.
Essas escolhas não são aleatórias: os Nkisi são os próprios elementos da natureza – água, pedra, ferro, fogo, terra, folha – e não reconhecem como sagrado aquilo que foi industrializado ou desconectado do mundo natural.
Por isso, os recipientes utilizados para alimentar os Minkisi devem carregar em si a mesma natureza viva que compõe esses encantados. Como nos ensina a tradição, Mam'etu Utukilo, a grande mãe do universo, é quem gera e movimenta todas as forças, e a ela devemos retornar tudo com a pureza que nos foi dada.
Curiosidades:
Em muitos terreiros de tradição Bantu no Brasil, ainda é comum o uso das cabaças secas como copos, pratos e até instrumentos musicais, reforçando a ideia de que o mesmo objeto pode servir tanto ao corpo quanto ao espírito.
Algumas folhas, como a do mamoeiro ou do embondeiro, também são utilizadas em certos territórios africanos por suas propriedades medicinais e simbólicas.
O barro dos recipientes muitas vezes é retirado de pontos específicos do território sagrado, como margens de rios ou locais indicados pelos mais velhos, reforçando a relação entre alimento, utensílio e território.
Assim, o ato de servir alimento torna-se um gesto de profunda comunhão com a natureza e com os antepassados. Nada é por acaso: cada folha, cada cabaça, cada barro tem uma história, uma energia e um ensinamento. O alimento não se limita ao que se come, mas também ao que se vê, ao que se toca e ao que se reverencia.
Comidas Sagradas dos Nkisi
No universo espiritual das tradições Bantu, os Nkisi são forças que habitam elementos da natureza – águas, árvores, pedras, metais, raízes – e se manifestam através de rituais e oferendas. As comidas sagradas, nesse contexto, não são apenas alimentos: são caminhos de comunicação com os encantados.
Preparações como o nkula (fubá vermelho), o ndengue (feijão-preto cozido com azeite de dendê), o inhame, a carne de caça, e o uso ritual de folhas específicas como a folha-de-são-gonçalo, a folha-da-costa e o mastruço revelam a sabedoria ancestral no trato com os elementos e suas forças.
Esses alimentos são consagrados em cerimônias e assentamentos, obedecendo a preceitos, restrições e tempos sagrados.
Cada Nkisi tem seu gosto, seu alimento preferido, seu modo de ser servido. E cozinhar para eles é, antes de tudo, um gesto de cuidado e escuta espiritual.
A Alimentação Diária: Resistência e Continuidade
Apesar da centralidade das comidas rituais, o cotidiano alimentar dos povos Bantu também carrega signos de resistência, adaptação e continuidade cultural.
A base da alimentação inclui raízes como o inhame, a mandioca e o cará, grãos como o milho e o feijão, além de folhas alimentícias e medicinais que crescem nos quintais e nas matas. Preparos como o funje (massa de farinha de mandioca ou milho), o muamba (ensopado com óleo de dendê e folhas), e o kizaca (refogado de folhas) são comuns tanto nas comunidades africanas quanto nas afro-brasileiras, como nas casas de candomblé de Angola e Congo.
Essa alimentação é moldada por princípios como a partilha, a sazonalidade e o respeito ao tempo de cada alimento. Comer é um ato coletivo, muitas vezes envolto em oralidade, narrativas e ensinamentos. É no dia a dia que se preserva a memória dos mais velhos e se ensina às crianças o valor de cada folha, de cada preparo.
Confira agora alguns pratos e receitas tradicionais de matriz Bantu que ilustram tanto o cotidiano quanto o sagrado dessa culinária ancestral.
Cada receita traz uma explicação do seu contexto e função simbólica ou prática:
1. Funje (ou Funge) de Mandioca
Origem: Angola e Congo
Contexto: Alimentação diária; também oferecido em rituais por seu caráter de base alimentar.
Ingredientes:
Farinha de mandioca fina (ou polvilho azedo)
Água
Modo de preparo: Ferva a água em uma panela. Aos poucos, vá adicionando a farinha de mandioca, mexendo vigorosamente com uma colher de pau até formar uma massa homogênea, firme e elástica. Sirva quente, acompanhando ensopados.
Significado: O funje é o “pão” dos povos Bantu. Ele é neutro no sabor e acompanha molhos fortes, promovendo saciedade e comunhão.
2. Muamba de Galinha (Muamba Nsusu)
Origem: Angola
Contexto: Prato festivo e ritual; servido em ocasiões especiais e para honrar ancestralidades.
Ingredientes:
Galinha caipira em pedaços
Alho, cebola, sal e pimenta
Óleo de dendê
Quiabo
Água
Modo de preparo: Refogue a galinha com os temperos e cozinhe até ficar macia. Acrescente o quiabo e finalize com óleo de dendê, deixando apurar até o molho engrossar.
Significado: Representa a fartura e a ligação com a terra. O uso do dendê e do quiabo remete aos saberes afro-diaspóricos da agricultura e do preparo coletivo.
3. Kizaca (Folhas Refogadas)
Origem: Congo
Contexto: Alimentação cotidiana; também presente em rituais pela força simbólica das folhas.
Ingredientes:
Folhas de mandioca, taioba ou ora-pro-nóbis (adaptável ao território)
Cebola, alho, sal
Óleo (de palma ou vegetal)
Modo de preparo: As folhas devem ser bem lavadas, cozidas e depois refogadas com os temperos. Em algumas regiões, adiciona-se amendoim moído ou leite de coco.
Significado: As folhas são vistas como portadoras de axé (força vital). Refogar folhas é um ato de nutrição espiritual e física, muito comum em comunidades tradicionais.
4. Nfiti (Ensopado de Carne de Caça ou Miúdos)
Origem: Bacia do Congo
Contexto: Preparado em ocasiões rituais ou de caça; ligado à ancestralidade masculina e à força dos caçadores.
Ingredientes:
Carne de caça ou miúdos (fígado, rins, coração)
Tomate, cebola, alho
Pimenta malagueta
Óleo e sal
Modo de preparo: Refogue os ingredientes e cozinhe lentamente, até que a carne esteja macia e o molho espesso.
Significado: A carne representa vitalidade e ligação com os antepassados caçadores; também evoca a relação com o mato e com os Minkisi da floresta.
5. Nkui (Sopa de Mucilagem)
Origem: Região dos Bamileke, Camarões
Contexto: Usado em cerimônias matrimoniais ou de iniciação; tem forte conotação de fecundidade.
Ingredientes:
Casca e galhos de plantas mucilaginosas (como o quiabo ou outras regionais)
Água
Condimentos leves (sal, gengibre)
Modo de preparo: Os ingredientes são cozidos por longas horas até soltar uma baba viscosa. A sopa é servida quente, geralmente com funje.
Significado: Associada ao feminino, à fertilidade e à continuidade dos ciclos da vida.
Essas receitas não são apenas pratos, mas sistemas de pensamento. Cada preparo carrega sentidos que vão além do nutricional: são tecnologias ancestrais, práticas de cura, formas de resistir e expressar uma visão de mundo em que corpo, território e espírito estão interligados.
A culinária Bantu, portanto, não se limita aos rituais: ela se prolonga nas panelas do cotidiano, nas técnicas herdadas e reinventadas, nos quintais repletos de saberes e sabores, onde o sagrado e o comum se encontram. Alimentar-se, para os povos Bantu, é sempre um gesto de pertencimento.

ANTROPOMORFISMO
COMENSALIDADE BANTU
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