ANCESTRALIDADE NÃO SE MONETIZA: AS ARMADILHAS DE TRANSFORMAR SABERES ANCESTRAIS EM VALOR DE NEGÓCIO

“Prepara Gastronomia debate ancestralidade como valor no negócio.” 

A manchete, divulgada pelo Diário do Comércio, anuncia o evento promovido pelo Sebrae Minas, que visa impulsionar negócios do segmento de alimentação fora do lar. 

À primeira vista, a proposta parece elogiosa: valorizar saberes ancestrais, dar visibilidade às culturas tradicionais e fomentar inovação a partir das raízes. Mas basta uma segunda leitura — ou um olhar mais atento — para perceber a tensão fundamental que atravessa esse tipo de iniciativa: a tentativa de conciliar, numa mesma panela, ancestralidade e valor de negócio.

O problema não está em reconhecer a potência dos saberes tradicionais. O perigo está em enquadrá-los dentro da lógica do mercado como diferencial competitivo, como ativo econômico. Ancestralidade não é um insumo. É fundamento. É prática viva de cuidado, território, espiritualidade, resistência. Foi, por séculos, desvalorizada, silenciada e criminalizada — e agora, sob a lógica neoliberal, é reapresentada como “tendência” ou “oportunidade de mercado”.

O Sebrae, ao propor um programa como o Prepara Gastronomia, atua sobre um terreno delicado: o da transformação de culturas alimentares ancestrais em valor agregado, em capital simbólico e econômico.

Quando se instrumentalizam saberes que foram passados de geração em geração por mulheres negras, indígenas e camponesas para fins de empreendedorismo, corre-se o risco de esvaziar seu sentido político, espiritual e afetivo.

O que acontece quando práticas de cuidado coletivo se tornam produtos instagramáveis? O que se perde quando o tempo lento da tradição é forçado a caber na dinâmica da produtividade e da monetização? O que resta é, muitas vezes, uma caricatura palatável para o consumidor urbano de classe média, que consome cultura sem se comprometer com as lutas de onde ela vem.

Há quem defenda que é possível equilibrar tradição e mercado, que “melhor monetizar do que desaparecer”. Mas a pergunta que permanece é: quem lucra com essa transição? E quem corre o risco de ser apagado — novamente — no processo?

Se queremos de fato valorizar a ancestralidade, precisamos garantir que ela continue sendo o que sempre foi: uma força coletiva de enraizamento, pertencimento e resistência. Fora disso, o que sobra é mais uma estratégia de mercado que se alimenta da memória alheia — sem jamais se comprometer com sua preservação.

É revoltante ver os mesmos agentes que nunca valorizaram os saberes populares agora tentarem embalá-los em linguagem corporativa para vendê-los como inovação.

É insultuoso ver tradições inteiras transformadas em “diferencial competitivo” por quem nunca se debruçou sobre a dor, a luta e o silêncio que essas tradições carregam. É preciso dizer com todas as letras: não se faz negócio com o que é sagrado.



https://diariodocomercio.com.br/negocios/prepara-gastronomia-debate-ancestralidade-como-valor-no-negocio



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