ALTA GASTRONOMIA: UM JOGO DE PODER, GOSTO E DISTINÇÃO
O que determina se uma culinária é ou não considerada “alta gastronomia”?
A ideia de alta gastronomia não nasce dos alimentos, dos modos de preparo ou dos sabores em si. Ela se constrói social e historicamente, dentro de sistemas que organizam e hierarquizam práticas culturais, saberes e gostos. Longe de ser uma categoria neutra ou universal, a alta gastronomia é uma construção social que reflete, reproduz e legitima relações de poder.
Se observarmos o surgimento da chamada grande cuisine — especialmente a francesa —, percebemos que ela se consolida a partir do século XVIII, quando as cortes europeias, seguidas pela burguesia ascendente, passam a codificar, sistematizar e valorizar determinados modos de cozinhar e servir. Esse movimento retira a cozinha de um campo puramente utilitário e a coloca como elemento de distinção cultural.
O Sentido Social do Gosto: a contribuição de Pierre Bourdieu
Para compreender profundamente o que está por trás da noção de alta gastronomia, é fundamental recorrer ao pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu, especialmente à sua obra clássica "A Distinção: Crítica Social do Julgamento" (1979).
Bourdieu demonstra que o gosto não é apenas uma escolha individual ou uma questão sensorial, mas um sistema de classificações sociais. O que cada grupo social considera belo, bom ou desejável está diretamente relacionado à sua posição na estrutura social. Nas palavras do próprio autor:
> “O gosto classifica, e, ao mesmo tempo, classifica quem o pratica.” — (Bourdieu, 1979)
O gosto, portanto, funciona como um marcador social. Aquilo que é considerado “sofisticado” serve não apenas para gerar prazer, mas também para afirmar a posição social de quem consome, diferenciando-se daqueles que têm outros repertórios culturais. Isso vale para a música, para a arte, para a moda — e, evidentemente, para a comida.
Alta Gastronomia como Campo de Distinção
Dentro dessa lógica, a alta gastronomia opera como um campo (no sentido que Bourdieu dá ao termo), onde agentes — chefs, críticos, instituições, prêmios, mídia especializada — disputam poder simbólico. A legitimidade de uma culinária como “alta” depende muito mais dos processos de reconhecimento por esses agentes do que das características intrínsecas da comida.
O que define se uma preparação feita com milho, mandioca, feijão ou jaca é alta gastronomia ou comida popular não é o ingrediente, mas o contexto simbólico no qual ele é colocado. Um prato pode ser considerado sofisticado quando servido em um restaurante reconhecido, assinado por um chef legitimado e apresentado segundo códigos estéticos alinhados às expectativas das elites culturais.
Bourdieu reforça:
> “O consumo de bens culturais é, antes de tudo, uma aquisição de distinções sociais.”
A princípio, essa busca pode parecer movida pelo desejo de valorização dos saberes, das técnicas e do fazer culinário. Mas, olhando pela lente da sociologia de Pierre Bourdieu, é impossível ignorar que o campo da alta gastronomia opera como um espaço de consagração simbólica. Nesse jogo, entrar na Haute Cuisine não significa apenas cozinhar melhor — significa acessar um circuito de prestígio, status e poder social.
Aqui, a pergunta se torna ainda mais provocadora: trata-se de um movimento de valorização real da culinária e de seus territórios, ou da busca por legitimação dentro das regras do jogo das elites? Afinal, quem define o que vale ou não vale? E, mais profundamente, o que se perde quando o desejo de reconhecimento se submete aos códigos de distinção impostos por esse sistema?
Se, como afirma Bourdieu, “o gosto é uma arma de distinção social”, não é exagero pensar que, muitas vezes, a busca pela alta gastronomia revela mais uma necessidade de ascensão e pertencimento ao espaço das elites culturais do que, de fato, um reconhecimento dos saberes populares em sua plenitude.
Outro ponto crucial é entender como a alta gastronomia frequentemente se apropria de elementos das cozinhas populares, rurais, periféricas ou tradicionais, deslocando-os de seus contextos de origem e atribuindo-lhes novos sentidos e valores. Esse movimento, que pode parecer uma valorização, muitas vezes só ocorre quando esses saberes passam a circular no campo legítimo da cultura hegemônica.
Aqui surge uma contradição: aquilo que, nos territórios, pode ser visto como prática cotidiana, ligada à ancestralidade e à vida comunitária, torna-se objeto de distinção, desde que mediado pelos filtros da estética, da técnica e do capital cultural dominante.
Alta Gastronomia: Reflexo ou Ruptura?
A reflexão que se impõe, portanto, é se a alta gastronomia, tal como construída, apenas reproduz as estruturas de desigualdade social ou se é capaz de operar deslocamentos, promovendo reconhecimento real dos saberes, territórios e práticas até então marginalizados.
É possível pensar numa alta gastronomia que subverta essa lógica? Que não seja apenas uma apropriação estética, mas uma verdadeira redistribuição de prestígio, recursos e voz para quem tradicionalmente esteve à margem?
O próprio Bourdieu sugere que a mudança dos sistemas simbólicos passa pela disputa no interior dos campos sociais. Assim, quando cozinheiras de territórios, mestras de saberes tradicionais, quilombolas, indígenas e periféricas ganham espaço nos circuitos de prestígio — sem abrir mão de suas epistemologias —, uma fissura se abre no edifício da distinção.
Por fim, compreender a alta gastronomia sob a luz de Pierre Bourdieu é entender que ela não se define apenas pela técnica, pela sofisticação ou pela estética, mas sobretudo pelo jogo simbólico que organiza quem tem o poder de nomear, de legitimar e de atribuir valor. O gosto, como diz Bourdieu, não é natural — é social.
A verdadeira transformação talvez resida em questionar as próprias bases desse jogo: quem decide o que é alta gastronomia? A quem ela serve? E, sobretudo, como podemos construir outros sistemas de valorização que não estejam a serviço da reprodução das hierarquias, mas sim do reconhecimento e da reparação histórica dos saberes invisibilizados?
Para quem busca se inserir no universo da alta gastronomia, é essencial compreender que esse não é apenas um espaço de técnica e sabor, mas sobretudo de símbolos, hierarquias e disputas por reconhecimento. Que a busca não seja apenas por prestígio, mas por sentido. Que cozinhar não se resuma à reprodução de códigos de distinção, mas sim à construção de pontes, de narrativas que honrem territórios, saberes ancestrais e coletividades. Afinal, a verdadeira sofisticação está em saber de onde se vem, para onde se quer ir — e, sobretudo, com quem se caminha.
Abraço do Loko!
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> “A obsessão contemporânea por comida, tão visível nos Instagrammers e influenciadores gastronômicos, não é um fenômeno novo. No século XIX, os parisienses já expressavam uma verdadeira fome simbólica, na qual o ato de comer ultrapassava a nutrição e se transformava em espetáculo, distinção e afirmação social. A gula, nesse contexto, não era apenas sobre alimento, mas sobre poder, status e pertencimento.”


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