TRUQUE DE LINGUAGEM: O QUE DIZEMOS E O QUE FAZEMOS?
Diversos países ao redor do mundo têm implementado políticas que integram saberes tradicionais em suas economias e sistemas culturais, reconhecendo o valor desses conhecimentos ancestrais para o desenvolvimento sustentável, a preservação ambiental e a promoção da diversidade cultural.
Dizemos que os saberes tradicionais são essenciais para a preservação dos biomas, que os povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e camponeses são os verdadeiros guardiões da biodiversidade. Contudo, o que fazemos com esse reconhecimento?
Por que é tão difícil para alguns lutarem pelo protagonismo dos povos tradicionais? Talvez porque isso implique abrir mão do centro. Reconhecer o protagonismo desses povos não é apenas dizer que eles são importantes.
É aceitar que o tempo deles é outro, que as formas de aprender e ensinar não cabem nas nossas planilhas. Que o saber é oral, é gesto, é ritual, é território.
Em muitos casos, é mais um truque de linguagem do que uma prática genuína de valorização. Falamos sobre a importância desses saberes, mas não os escutamos de verdade.
Repetimos como um mantra que esses povos possuem um conhecimento profundo do seu território, mas só o valorizamos quando ele é validado pela ciência ou transformado em produto pela indústria.
Essa contradição se reflete em todos os níveis, inclusive na gastronomia, onde transformamos as receitas e os ingredientes tradicionais em pratos autorais, folhas exóticas em guarnições e, muitas vezes, a própria floresta em uma tendência de mercado.
A natureza é celebrada na mesa, mas os povos que cuidam dela continuam marginalizados nas decisões. O que falta é um compromisso real com o protagonismo desses povos, que não se resume a palavras bonitas e aplausos, mas a uma prática de escuta genuína, de cedência de espaço e de partilha de decisões.
O verdadeiro valor dos saberes tradicionais está em reconhecer que esse conhecimento não cabe apenas no prato ou em um diploma, mas que sustenta mundos inteiros. E, enquanto não nos dispusermos a romper com esse ciclo de apropriação e exclusão, continuaremos aplaudindo os sabores da terra enquanto silenciamos os corpos que os cultivam.
Valorização real é quando deixamos de olhar para esses saberes como uma mercadoria ou uma tendência e começamos a olhar para eles como aquilo que são: fontes de sabedoria e resistência que sustentam as comunidades e o meio ambiente. É reconhecer que a floresta precisa de liberdade, e os saberes que dela emanam, também.
Para que esse alinhamento entre discurso e prática aconteça, é preciso entender que as soluções estão na troca genuína e no respeito pelo protagonismo dos povos tradicionais, onde o território, o tempo e o saber ancestral não se transformem em produto ou estética, mas sejam vividos, respeitados e reconhecidos como fundamentais para a continuidade da vida no planeta.
O verdadeiro valor desses saberes só será alcançado quando estivermos dispostos a abrir mão do centro, a escutar e aprender, a romper com as estruturas coloniais que ainda nos impedem de ver e valorizar esses saberes de forma plena e sem distorções.
PROTAGONISMO ALIMENTAR DOS POVOS TRADICIONAIS
Sim — os povos tradicionais não só podem, como devem ser protagonistas na questão alimentar e no mercado, especialmente num contexto de crise climática e busca por soluções sustentáveis. No entanto, para que essa centralidade seja real e não simbólica, é preciso romper com as estruturas que historicamente os marginalizam.
Protagonistas na questão alimentar
•Detentores de saberes milenares: Povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e camponeses guardam técnicas de cultivo, coleta, pesca, preparo e conservação de alimentos que respeitam o ritmo da natureza e garantem diversidade biológica e cultural.
•Práticas regenerativas: Muitas dessas práticas alimentares não exploram a terra de forma predatória. São sustentáveis por origem — com roçados de quintal, sistemas agroflorestais, cultivo de plantas alimentícias tradicionais, manejo de sementes crioulas.
•Soberania alimentar: Esses povos praticam, muitas vezes, o que os movimentos sociais chamam de soberania alimentar — o direito de decidir o que plantar, como plantar e o que comer.
Protagonistas no mercado? Só se houver mudanças estruturais
Hoje, a presença é marcada por:
•Exploração e atravessadores: Muitos produtos oriundos desses povos são comprados a preços irrisórios e revendidos com altos lucros, sem reconhecimento do saber envolvido.
•Falta de acesso a crédito, logística e infraestrutura: Dificulta a entrada justa no mercado formal.
•Burocracias e normas sanitárias excludentes: As exigências legais não reconhecem modos tradicionais de produção e impedem a comercialização de muitos produtos em mercados amplos.
Para haver protagonismo real:
Políticas públicas específicas: Que apoiem cadeias produtivas tradicionais com assistência técnica, crédito adaptado, compras públicas e reconhecimento de saberes.
Circuitos curtos e diretos: Feiras, cestas solidárias, redes de intercâmbio comunitário, turismo de base comunitária.
Certificações populares: Como o selo da sociobiodiversidade, ou selos próprios criados pelas próprias comunidades, que garantam origem e práticas éticas.
O perigo de um “protagonismo de vitrine”
Chamar povos tradicionais para falar ou aparecer em eventos (como a COP 30) sem garantir autonomia, repartição de renda e espaço de decisão é tokenismo — e não protagonismo.
Protagonismo não é só estar presente — é poder decidir, influenciar políticas e lucrar com justiça.
Conclusão
Os povos tradicionais são guardiões do futuro alimentar do planeta. Mas para que isso se traduza em mercado justo e valorização real, é preciso repensar o sistema. O protagonismo deles desafia as lógicas dominantes: é coletivo, é territorial, é afetivo, e não se submete às regras do lucro a qualquer custo.
🌎 A seguir, apresento alguns exemplos notáveis de Países que Integraram Saberes Tradicionais em Suas Políticas
🇧🇴 Bolívia
A Bolívia incorporou o conceito de "Sumak Kawsay" (bem viver) em sua Constituição de 2009, reconhecendo a importância dos saberes indígenas na construção de uma sociedade justa e equilibrada. Esse conceito fundamenta-se em princípios como harmonia com a natureza e reciprocidade, influenciando políticas públicas e práticas culturais no país.
🇪🇨 Equador
No Equador, movimentos indígenas promoveram a inclusão do "Sumak Kawsay" na Constituição de 2008, estabelecendo um modelo de desenvolvimento que prioriza o bem-estar coletivo e a sustentabilidade ambiental. Esse paradigma tem sido aplicado em diversas políticas públicas e iniciativas comunitárias.
🇨🇴 Colômbia
Na Colômbia, a Associação de Produtores para o Desenvolvimento Comunitário da Ciénaga Grande del Bajo Sinú (ASPROCIG) reúne milhares de famílias que implementam práticas agrícolas sustentáveis baseadas em saberes tradicionais, como os Sistemas Agroecológicos em Diques Altos, promovendo a soberania alimentar e a preservação ambiental.
🇵🇪 Peru
O Peru tem integrado práticas de medicina tradicional em seu sistema de saúde pública, reconhecendo o uso de fitoterápicos e terapias tradicionais como parte das Medicinas Complementares e Integrativas (MCI). Isso inclui a utilização de plantas medicinais e terapias tradicionais em unidades de atenção primária à saúde.
🇲🇽 México
O México possui uma rica tradição de saberes indígenas, especialmente no campo da medicina tradicional. O país implementou políticas que reconhecem e promovem o uso de práticas tradicionais de saúde, incluindo a formação de terapeutas tradicionais e a inclusão de terapias indígenas no sistema de saúde pública.
🇧🇷 Brasil
No Brasil, iniciativas como a Operação Amazônia Nativa (OPAN) atuam no fortalecimento do protagonismo indígena, promovendo a valorização de suas culturas e modos de organização social. A OPAN trabalha na capacitação de lideranças indígenas e na implementação de projetos que respeitam os saberes tradicionais.
🇹🇻 Tuvalu
Tuvalu desenvolveu a estratégia nacional Te Kakeega, que incorpora práticas e valores tradicionais no planejamento do desenvolvimento sustentável. Essa abordagem reconhece a importância dos saberes locais na gestão de recursos naturais e na adaptação às mudanças climáticas.
🇻🇺 Vanuatu
O movimento Nação Turaga em Vanuatu promove uma economia baseada nos costumes tradicionais (kastom), utilizando sistemas de troca como escambo e moedas tradicionais. A criação de uma moeda própria, o livatu, simboliza a valorização dos saberes e práticas culturais locais.
Esses exemplos demonstram como a integração dos saberes tradicionais pode contribuir para políticas públicas mais inclusivas, sustentáveis e culturalmente respeitosas. Ao reconhecer e valorizar esses conhecimentos, os países não apenas preservam suas heranças culturais, mas também promovem modelos de desenvolvimento mais justos e equilibrados.


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