O PRATO VIRA TELA: QUEM É AUTOR NA COZINHA?

Você já parou pra pensar se um prato pode ser protegido por direitos autorais?

A jurista Anne Felinto Ramos mergulhou nesse debate em sua tese "O Prato Vira Tela", defendida na UFRN, e levantou uma provocação poderosa: quando a comida ultrapassa o campo da técnica e se torna expressão artística, ela não deveria ser reconhecida como obra de criação?

Mas a legislação brasileira ainda não alcança esse nível de sutileza. A receita em si não pode ser protegida como obra autoral. E quanto à apresentação do prato? Seu conceito estético, a narrativa visual, os elementos simbólicos — isso pode ser arte?

Anne argumenta que sim. E vai além: se performances efêmeras e grafites podem ser reconhecidos como arte, por que não um prato que carrega ancestralidade, crítica social ou poesia visual?

Esse debate toca em algo mais profundo: quem tem direito de ser reconhecido como autor? O chef de um restaurante badalado? A senhora que repete há décadas a tradição da sua comunidade? O saber oral pode ser considerado original?

Numa época em que o mercado transforma tudo em commodity, pensar a cozinha como espaço de autoria é também um ato político. Valorizar a criação culinária — em sua estética, memória e gesto — é reconhecer que alimento também é linguagem, território e arte.

O trabalho de conclusão de curso (TCC) intitulado "O Prato Vira Tela: As Implicações de Produções Gastronômicas como Arte para ter sua Originalidade Protegida pelo Direito Autoral Brasileiro" foi elaborado por Anne Felinto Ramos como parte do curso de graduação em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), concluído em 2022. 

Principais Temas Abordados

O TCC investiga a possibilidade de considerar produções gastronômicas — especialmente aquelas que envolvem criatividade estética e conceitual — como obras artísticas passíveis de proteção pelo Direito Autoral no Brasil. A autora analisa os critérios legais de originalidade, criatividade e fixação em meio tangível, conforme estabelecido pela Lei nº 9.610/98, e discute se pratos culinários podem ser enquadrados nesses parâmetros. 

A conclusão do trabalho aponta que, embora receitas culinárias em si não atendam aos requisitos para proteção por direitos autorais, devido à falta de originalidade e criatividade suficientes, a apresentação estética dos pratos pode ser considerada uma forma de expressão artística. Assim, a proteção legal poderia ser buscada por meio de outros mecanismos, como o segredo industrial, que protege o valor comercial das receitas mantendo-as em segredo.

A tese “O Prato Vira Tela”, de Anne Felinto Ramos, traz uma contribuição relevante ao debate sobre os direitos autorais na gastronomia, especialmente no contexto brasileiro, onde a legislação ainda é tímida ao tratar expressamente da proteção de criações culinárias. A análise sob a luz dessa tese permite destacar alguns eixos críticos e implicações culturais e jurídicas:

A criação culinária como expressão artística

A autora parte do princípio de que certos pratos gastronômicos ultrapassam o domínio da técnica e se inserem no campo da arte — tal como a pintura, a escultura ou a música. Ela propõe uma analogia entre o prato e a tela: quando um chef cria algo visualmente expressivo, simbólico, inovador e culturalmente carregado, essa obra poderia merecer proteção autoral, como qualquer obra artística.

Crítica importante: o sistema jurídico brasileiro, pela Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), exige originalidade e expressão criativa em meio tangível. A autora argumenta que a estética e a composição de um prato — desde que únicas e dotadas de criatividade — poderiam atender a esses requisitos, ainda que isso não se aplique a qualquer prato do cotidiano.

Limites jurídicos e o problema da efemeridade

Um dos principais impasses discutidos é a efemeridade da obra gastronômica: o prato é consumido, desmontado, destruído. Isso dificulta sua fixação em meio tangível — requisito para a proteção autoral. Mesmo com registros fotográficos ou audiovisuais, o objeto artístico (o prato) não se preserva em sua integridade.

Reflexão da tese: o prato não precisa ser permanente para ser arte — assim como a performance, o grafite ou a arte efêmera. Porém, a legislação brasileira ainda não acompanha essa visão mais contemporânea do que pode ser protegido.

Receita vs. Apresentação

A tese diferencia a receita — vista como uma técnica ou método, geralmente não protegida por direito autoral — da apresentação artística do prato, que pode revelar originalidade.

Exemplo: Uma moqueca ou feijoada tradicional dificilmente seria protegida como obra autoral. Mas a forma como um chef a reinventa visualmente ou conceitualmente pode configurar um ato autoral, desde que inovador.

Alternativas jurídicas: segredo industrial e concorrência desleal

Como a proteção autoral é limitada, Anne Ramos aponta o segredo industrial (proteção de fórmulas, receitas e processos) e a concorrência desleal (caso alguém copie indevidamente a estética ou o conceito do prato) como saídas possíveis para proteger a criação gastronômica.

Esses mecanismos, porém, são menos idealistas e mais comerciais, e não valorizam necessariamente o aspecto artístico e cultural do prato — questão central para quem vê a culinária como linguagem identitária.

Relevância cultural e política da tese

A tese também nos convida a pensar quem tem direito de proteger sua criação gastronômica: chefs renomados ou cozinheiras de tradição oral? A discussão jurídica não pode ignorar os saberes tradicionais, muitas vezes invisibilizados pela falta de registro formal, mas portadores de originalidade e ancestralidade.

Esse ponto é essencial em contextos como o brasileiro, onde a culinária afro-indígena tem papel estruturante. A tese sugere um ponto de partida para que o direito reconheça formas não convencionais de autoria.

Sob a luz da tese de Anne Felinto Ramos, é possível afirmar que:

A gastronomia pode ser reconhecida como forma de arte e, portanto, merecer proteção autoral em casos específicos;

A legislação atual é limitada e precisa ser reinterpretada ou reformada para abranger a complexidade da criação culinária;

Há uma tensão entre o comercial e o cultural, entre o que é arte efêmera e o que é técnica industrial — essa tensão é especialmente visível no Brasil, onde o saber popular muitas vezes escapa da linguagem do direito;

A proteção de criações gastronômicas exige sensibilidade cultural, além de critérios jurídicos mais inclusivos.


Acesso ao TCC


O texto completo do TCC está disponível no repositório institucional da UFRN e pode ser acessado diretamente pelo link: 


👉 Leia o TCC completo em PDF


Aqui está o link compartilhável para o PDF do TCC:

Download do TCC - Anne Felinto Ramos


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