O poder da culinária Nordestina
Saiba o que faz cultura alimentar do Ceará ser rica em diversidades de sabores.
No Nordeste brasileiro e no Ceará, em particular, foi a cultura indígena que se sobressaiu diante da experiência histórica colonial, curtindo o paladar local como nenhuma outra. É o que afirma a nutricionista e professora do curso de Nutrição da Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, Iramaia Bruno Silva, explicando historicamente a “queda” que os cearenses têm, por exemplo, pelos derivados da mandioca, raiz nativa que dá origem a diferentes farinhas, caldos e amidos amplamente usados pelo país e que está na base da feitura da tapioca e do beiju, por exemplo.
“O período de colonização do Brasil e das viagens de exploração também explica o gosto arraigado do nordestino pela carne seca e carne de sol, dada a facilidade do manejo e o antigo método de conserva ao relento, sem necessidade de refrigeração. É a chamada comida de contingência, até hoje fortemente presente por aqui, da qual também faz parte o baião de dois, por exemplo, uma mistura de feijão com arroz e temperos preparada dentro de uma panela só, justamente por conta dos poucos recursos disponíveis nessas travessias e do modo itinerante de vida que se fez tradição na região, exigindo uma alimentação prática. Hoje já temos 31 tipos diferentes de baião de dois no modo de preparo”, contextualiza a professora.
Mastigada, a história da alimentação no Brasil revela mais: os diversos biomas também tendem a engrossar o caldo típico de uma cultura alimentar. “A região litorânea do Ceará, por exemplo, incita o gosto por pescados e frutos do mar, com destaque para a caranguejada, bem característica daqui; da região serrana, além das frutas, não há como não destacar também o milho, do qual se faz o cuscuz, a canjica, a pamonha, além do mugunzá, que pode ser doce, feito com o leite de coco ou com feijão e carne seca. Todos esses são alimentos com alto teor nutricional, por isso dão sustança, como se diz”, assinala a paulista de nascimento que mora desde criança no Ceará.
Para a nutricionista, o prazer da degustação também passa pelos benefícios à saúde oriundos dos alimentos saídos dos chãos nativos. Daí porque nunca é demais chamar atenção para o alto poder nutricional de iguarias menos conhecidas e inusitadas do Nordeste brasileiro. “O pequi, fruto muito explorado na região do cariri cearense, é rico em carotenóides, vitaminas, fibras e gorduras saudáveis. Cozido com um caldo grosso pode ser misturado ao arroz ou à carne. Da polpa pode se extrair também o azeite de pequi, um óleo usado para condimento e na fabricação de licores. É ainda muito bom para a imunidade, visão, pele e ajuda a diminuir o nível de colesterol ruim”, assegura.
Pagou caro pela manteiga ghee? Pois engula essa: “a manteiga da terra do Ceará ou manteiga de garrafa equivale em consistência e sabor a sua concorrente gourmetizada porque passa exatamente pelo mesmo processo de clarificação, mas o preço nas gôndolas acaba sendo bem menor”. Saiba mais: cacto não é comestível, correto? Errado. “A palma forrageira, que no Nordeste sempre alimentou o gado, além de matar a sede e a fome de retirantes em época de grandes estiagens, contém fibra e muita água, por isso pode ser usada para fazer sucos e até ser consumida in natura, retirando a casca e as sementes. Rica em vitaminas A, C e do complexo B, tem vários tipos de aminoácidos essenciais para o desenvolvimento humano, entre outros nutrientes. É cozinhar e comer, sabendo que essa planta inclusive já figura entre chefs de cozinha como prato gourmet”, sustenta Iramaia.
Gourmetização com sotaque
A antiga cozinha brasileira ensina: o arroz com feijão, carro-chefe da culinária nordestina, é par perfeito, encabeçando a fila dos alimentos que proporcionam mais benefícios ao organismo quando são consumidos juntos. “Não sabemos ao certo a origem dessa junção, mas a hipótese mais aceita é a de que seria fruto de uma combinação do arroz trazido pelos portugueses para o Brasil com o feijão já consumido pelos ameríndios. O fato é que em termos de nutrientes um complementa o outro. Ambos são ricos em aminoácidos, por exemplo, mas o que falta em um sobra no outro: enquanto o grão concentra metionina, a leguminosa possui a lisina. Além disso, o arroz, principalmente integral, carrega fibras e vitaminas do complexo B. Já o feijão tem ferro, cobre, magnésio, zinco, fósforo, cálcio e potássio. Ou seja, temos aí uma refeição completa”, detalha o estudante do 5º semestre do curso de Nutrição da Unifor, João Emanuel.
Cearense bom de boca
Bolinhos de um mix de favas? Torresminho de tilápia? Feijoada de mariscos? No Ceará tem disso, sim! E foi pisando fundo no nosso quintal e revirando com gosto a fartura de insumos própria de uma geografia feita de litoral, serra e sertão que a chef de cozinha Vangila Régia da Silva Militão conseguiu atrair para o ambiente rústico e aconchegante da Culinária da Van o cearense bom de boca. Mas se engana quem pensa que o sucesso gastronômico de público e crítica da Van lhe chegou facilmente: narciso às avessas, o comensal conterrâneo parecia não conhecer o próprio potencial e toda a diversidade de sabores possíveis quando uma mesa tipicamente cearense urgia ser posta.
“Foi preciso primeiro vir gente de fora para saborear e reconhecer as maravilhas da nossa cozinha. Só depois da visita e do aval de chefs brasileiros e até de outros países, que repercutiram na imprensa, é que o cearense se deixou atrair para então fidelizar e se apaixonar completamente. Costumo dizer que minha culinária é afetiva, porque nasce do vivido, das receitas de minha avó Maria Adelaide e da mágica que ela conseguia fazer com tão pouco na cozinha da minha infância. Ficava ali na barra da saia e via os nossos mais genuínos e simples ingredientes virarem um cozidão, uma panelada, uma paçoca de pirarucu que só ela sabia fazer. Entendi bem cedo que o segredo está na forma de cozinhar”, afirma Van.
Para Van, Fortaleza foi invadida pelos sushis e restaurantes italianos sem que conhecesse sequer os manjares nascidos entre seus diversos biomas. “O arroz selvagem dos quintais da Serra Ibipiapaba nada deixa a dever em qualidade e sabor ao caríssimo arroz arbóreo italiano. Se a gente soubesse o tesouro que tem não entrava nem em supermercado”, ri-se a chef com talento para arqueologia. Assim, quanto mais pesquisa e se surpreende na cozinha, mais Van lamenta por quem jamais pôs os olhos ou lambeu os beiços diante de um guisado de carneiro na cachaça envelhecida, acompanhado de um purê rústico de macaxeira, arroz soltinho de alho e farofa crocante.
Derradeira revelação, só para rebater: na Culinária da Van quase tudo é preparado com cachaça, outra iguaria local que, apreciada com ou sem moderação, tempera a vida do cearense guiado pelo pecado da gula e por toda a fartura característica de uma região que sempre soube matar a fome e a sede com criatividade e resiliência.
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