O poder da culinária Nordestina

Saiba o que faz cultura alimentar do Ceará ser rica em diversidades de sabores.

Paixão nordestina, o cuscuz é curinga na mesa dos cearenses. Na foto, a estudante de Nutrição da Unifor, Vitória Brenda — Foto: Ares Soares
Para sentar à mesa com o Brasil é preciso meter a colher em três diferentes panelas: a indígena, a africana e a portuguesa. Resultante das heranças e tradições das três matrizes étnicas formadoras da sociedade brasileira, a culinária nacional tem gosto de mestiçagem e, em cada região do país, o modelo alimentar aculturativo apura o próprio gosto, produzindo sabores tão diversos quanto apurados.

No Nordeste brasileiro e no Ceará, em particular, foi a cultura indígena que se sobressaiu diante da experiência histórica colonial, curtindo o paladar local como nenhuma outra. É o que afirma a nutricionista e professora do curso de Nutrição da Universidade de Fortaleza, instituição vinculada à Fundação Edson Queiroz, Iramaia Bruno Silva, explicando historicamente a “queda” que os cearenses têm, por exemplo, pelos derivados da mandioca, raiz nativa que dá origem a diferentes farinhas, caldos e amidos amplamente usados pelo país e que está na base da feitura da tapioca e do beiju, por exemplo.

“O período de colonização do Brasil e das viagens de exploração também explica o gosto arraigado do nordestino pela carne seca e carne de sol, dada a facilidade do manejo e o antigo método de conserva ao relento, sem necessidade de refrigeração. É a chamada comida de contingência, até hoje fortemente presente por aqui, da qual também faz parte o baião de dois, por exemplo, uma mistura de feijão com arroz e temperos preparada dentro de uma panela só, justamente por conta dos poucos recursos disponíveis nessas travessias e do modo itinerante de vida que se fez tradição na região, exigindo uma alimentação prática. Hoje já temos 31 tipos diferentes de baião de dois no modo de preparo”, contextualiza a professora.

Mastigada, a história da alimentação no Brasil revela mais: os diversos biomas também tendem a engrossar o caldo típico de uma cultura alimentar. “A região litorânea do Ceará, por exemplo, incita o gosto por pescados e frutos do mar, com destaque para a caranguejada, bem característica daqui; da região serrana, além das frutas, não há como não destacar também o milho, do qual se faz o cuscuz, a canjica, a pamonha, além do mugunzá, que pode ser doce, feito com o leite de coco ou com feijão e carne seca. Todos esses são alimentos com alto teor nutricional, por isso dão sustança, como se diz”, assinala a paulista de nascimento que mora desde criança no Ceará.

Para a nutricionista, o prazer da degustação também passa pelos benefícios à saúde oriundos dos alimentos saídos dos chãos nativos. Daí porque nunca é demais chamar atenção para o alto poder nutricional de iguarias menos conhecidas e inusitadas do Nordeste brasileiro. “O pequi, fruto muito explorado na região do cariri cearense, é rico em carotenóides, vitaminas, fibras e gorduras saudáveis. Cozido com um caldo grosso pode ser misturado ao arroz ou à carne. Da polpa pode se extrair também o azeite de pequi, um óleo usado para condimento e na fabricação de licores. É ainda muito bom para a imunidade, visão, pele e ajuda a diminuir o nível de colesterol ruim”, assegura.

Pagou caro pela manteiga ghee? Pois engula essa: “a manteiga da terra do Ceará ou manteiga de garrafa equivale em consistência e sabor a sua concorrente gourmetizada porque passa exatamente pelo mesmo processo de clarificação, mas o preço nas gôndolas acaba sendo bem menor”. Saiba mais: cacto não é comestível, correto? Errado. “A palma forrageira, que no Nordeste sempre alimentou o gado, além de matar a sede e a fome de retirantes em época de grandes estiagens, contém fibra e muita água, por isso pode ser usada para fazer sucos e até ser consumida in natura, retirando a casca e as sementes. Rica em vitaminas A, C e do complexo B, tem vários tipos de aminoácidos essenciais para o desenvolvimento humano, entre outros nutrientes. É cozinhar e comer, sabendo que essa planta inclusive já figura entre chefs de cozinha como prato gourmet”, sustenta Iramaia.

Gourmetização com sotaque

A antiga cozinha brasileira ensina: o arroz com feijão, carro-chefe da culinária nordestina, é par perfeito, encabeçando a fila dos alimentos que proporcionam mais benefícios ao organismo quando são consumidos juntos. “Não sabemos ao certo a origem dessa junção, mas a hipótese mais aceita é a de que seria fruto de uma combinação do arroz trazido pelos portugueses para o Brasil com o feijão já consumido pelos ameríndios. O fato é que em termos de nutrientes um complementa o outro. Ambos são ricos em aminoácidos, por exemplo, mas o que falta em um sobra no outro: enquanto o grão concentra metionina, a leguminosa possui a lisina. Além disso, o arroz, principalmente integral, carrega fibras e vitaminas do complexo B. Já o feijão tem ferro, cobre, magnésio, zinco, fósforo, cálcio e potássio. Ou seja, temos aí uma refeição completa”, detalha o estudante do 5º semestre do curso de Nutrição da Unifor, João Emanuel.

João Emanuel, estudante do curso de Nutrição da Universidade de Fortaleza  — Foto: arquivo pessoal
João Emanuel, estudante do curso de Nutrição da Universidade de Fortaleza — Foto: arquivo pessoal
Entusiasta declarado das tradições culinárias, o leitor de Câmara Cascudo celebra os hábitos alimentares sobreviventes, mas não teme a gourmetização das receitas populares ou nativas. “O termo gourmet define pratos executados de acordo com a alta cozinha – haute cuisine, do francês – e é a grande sensação do mercado, por unir a ideia de qualidade e uso dos melhores ingredientes ao apelo visual dos alimentos e uma explosão de sabores. E eu não posso ser contra isso, já que muitos dos insumos nordestinos hoje surfam nessa onda, inspirando novas técnicas de preparação e agregando status à gastronomia local graças ao uso inovador que os grandes chefs de cozinha nacional e internacional vêm fazendo”, frisa.
Para Emanuel, é notória e digna de nota a crescente valorização da cultura alimentar brasileira mundo afora, assim como, internamente, também se quebrou muito preconceito em relação a certos hábitos alimentares regionais. “Uma culinária que nasce mestiça não pode se fechar às experimentações. Mais até do que pela gourmetização, me interesso por uma ciência dedicada ao estudo dos processos químicos e físicos relacionados à culinária, que é a gastronomia molecular, aquela que estuda os mecanismos envolvidos nas transformações dos ingredientes no cozimento. Quero mudar a percepção e a sensação das pessoas frente aos alimentos, seja alterando aspectos como cor, forma, textura e aroma ou buscando novos sabores, através de combinações inusitadas com espumas ou gels, por exemplo”, anima-se o dono da confeitaria on line João dos Doces e criador de bolos e doces gourmets.

Cearense bom de boca

Bolinhos de um mix de favas? Torresminho de tilápia? Feijoada de mariscos? No Ceará tem disso, sim! E foi pisando fundo no nosso quintal e revirando com gosto a fartura de insumos própria de uma geografia feita de litoral, serra e sertão que a chef de cozinha Vangila Régia da Silva Militão conseguiu atrair para o ambiente rústico e aconchegante da Culinária da Van o cearense bom de boca. Mas se engana quem pensa que o sucesso gastronômico de público e crítica da Van lhe chegou facilmente: narciso às avessas, o comensal conterrâneo parecia não conhecer o próprio potencial e toda a diversidade de sabores possíveis quando uma mesa tipicamente cearense urgia ser posta.

“Foi preciso primeiro vir gente de fora para saborear e reconhecer as maravilhas da nossa cozinha. Só depois da visita e do aval de chefs brasileiros e até de outros países, que repercutiram na imprensa, é que o cearense se deixou atrair para então fidelizar e se apaixonar completamente. Costumo dizer que minha culinária é afetiva, porque nasce do vivido, das receitas de minha avó Maria Adelaide e da mágica que ela conseguia fazer com tão pouco na cozinha da minha infância. Ficava ali na barra da saia e via os nossos mais genuínos e simples ingredientes virarem um cozidão, uma panelada, uma paçoca de pirarucu que só ela sabia fazer. Entendi bem cedo que o segredo está na forma de cozinhar”, afirma Van.

A chef Vangila Régia da Silva Militão comanda o point gastronômico Culinária da Van  — Foto: arquivo pessoal
A chef Vangila Régia da Silva Militão comanda o point gastronômico Culinária da Van — Foto: arquivo pessoal
Respeito. Eis a palavra com a qual a cozinheira de raiz engrossa o caldo da gastronomia cearense. “Prezo pelo sabor original da comida da terra e acho que o sucesso da Culinária da Van vem disso. Já vi cliente chorando à mesa depois da primeira garfada porque voltou em memória para a casa da mãe. E sigo resgatando sabores e pratos esquecidos, como o nosso mugunzá salgado, que muita gente nem conhece, ou a passarinha, um churrasquinho que minha vó fazia com o baço do boi, um insumo muito barato que passei a servir como entrada juntamente com vinagre feito com pipoca de feijão de corda frito”, ilustra a chef que também recuperou da memória o “capitãozinho”, inventando similares como o bolinho de feijão de corda recheado com charque, galinha caipira ou mesmo pernil – tudo embebido no molho barbecue de tamarindo.

Para Van, Fortaleza foi invadida pelos sushis e restaurantes italianos sem que conhecesse sequer os manjares nascidos entre seus diversos biomas. “O arroz selvagem dos quintais da Serra Ibipiapaba nada deixa a dever em qualidade e sabor ao caríssimo arroz arbóreo italiano. Se a gente soubesse o tesouro que tem não entrava nem em supermercado”, ri-se a chef com talento para arqueologia. Assim, quanto mais pesquisa e se surpreende na cozinha, mais Van lamenta por quem jamais pôs os olhos ou lambeu os beiços diante de um guisado de carneiro na cachaça envelhecida, acompanhado de um purê rústico de macaxeira, arroz soltinho de alho e farofa crocante.

Guisado de carneiro na cachaça envelhecida, prato assinado pela chef Van  — Foto: culinária da Van/divulgação
Guisado de carneiro na cachaça envelhecida, prato assinado pela chef Van — Foto: culinária da Van/divulgação
Apaixonada pelo que faz, ainda sonha com o dia em que o Ceará bom de boca se alimente de si e festeje sua culinária muito mais apaixonadamente do que hoje, circulando à vontade tanto no circuito gastronômico quanto acadêmico. Assim, nenhum cearense deixará de salivar e bradar aos quatro ventos o inigualável sabor de uma feijoada de mariscos, acompanhada de arroz branco, farofinha crocante de coco com dendê, torresmo de tilápia e piabinhas fritas. Ou conterá o orgulho de sua carne de sol no bafo com manteiga da terra e cebola roxa, acompanhada de um arroz bem cremosinho de leite, batata doce salteada, vinagrete com pipoca de feijão verde e picles de cebola roxa.
Feijoada de mariscos da chef Van  — Foto: culinária da Van/divulgação
Feijoada de mariscos da chef Van — Foto: culinária da Van/divulgação
Com o corpo fechado de tatuagens supercoloridas e uma equipe de 26 funcionários para comandar no coração do Benfica, bairro universitário e point boêmio de Fortaleza, a alquimista que quer espalhar o Ceará bom de boca pelo mundo só não revela o segredo dos temperos que prepara recolhidamente naquele laboratório de sabores que é a Culinária da Van. São eles, afinal, que tornam diferente o comum, apurando o gosto inigualável de um baião de dois com feijão verde, molhadinho de nata fresca, maçaricado com coalho e acompanhado pela paçoca de carne de sol com manteiga da terra e cebola roxa, tendo por cima o ovinho frito da gema mole e a banana empanada.

Derradeira revelação, só para rebater: na Culinária da Van quase tudo é preparado com cachaça, outra iguaria local que, apreciada com ou sem moderação, tempera a vida do cearense guiado pelo pecado da gula e por toda a fartura característica de uma região que sempre soube matar a fome e a sede com criatividade e resiliência.

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