Aromas e sabores de outrora

Por Paulo Ormindo de Azevedo

Um dos ramos da antropologia que mais tem se desenvolvido nas últimas décadas é o referente à gastronomia associada a rituais religiosos, hábitos sociais, dietas e  tabus.

É lamentável a mudança alimentícia de nossa população, que de uma culinária riquíssima foi reduzida a hambúrgueres e batatinhas salgadas, que são consumidos nos carros ou no metrô. 

A cozinha baiana de matriz africana e portuguesa era feita em casa. Poucos eram os restaurantes que ofereciam estas comidas, salvo o Porto do Moreira, no Cabeça, a Gruta Azul, em Cachoeira, e o novo Dona Mariquita, no Rio Vermelho, mas com poucas opções. 

Onde comer hoje o efó, a maniçoba, o bobó de fruta-pão, a quenga de galinha, o sarapatel, o meninico de carneiro, a buchada, o mocotó, a farofa de bambá e o acaçá? Faltam inclusive os ingredientes para prepará-los, como a casa de abelha e o livro das fateiras, a tripa de porco limpa com varinha, a taioba, o bredo, o biribiri, e os condimentos dos verdureiros sergipanos: coentro,  manjericão,  hortelã,  alecrim e pimenta de cheiro. É mais simples usar os caldos em cubinhos, o molho inglês, o ketchup e o aji-no-moto, que recupera o sabor de carnes sentidas.

Comidas que eram precedidas da olorosa caninha ou de batidas de frutas, hoje apenas inodoras roskas. Refeições regadas a aluá fermentado, umbuzada com leite, abacatada, vitaminas de frutas e clorofila substituídas pela Coca Cola. Também as sobremesas desapareceram, como os bolos de carimã e de estudante, ou punheta, os doces de abóbora cristalizada no cal e o de tamarindo agridoce, a goiabada cascão, a bananada na folha seca, o alferes, a à moda, o quebra-queixo de coco e de amendoim, a rapadura puxa e o mel de cana com farinha. Basta o flan da Nestlé. 

Quem não quisesse doce, podia se lambuzar com as mangas de Itaparica: carlota, espada, rosa, augusta e papo de rola. Podemos hoje escolher entre Tommy e a Palmer. E que dizer da jaca, cujo parto de seus bagos se fazia por cesariana deixando sua placenta em nossos dedos, a mexerica e o indelével visgo da mangaba e do sapoti.

Hoje a classe média prefere a maçã, a pera e os morangos e belisca, às escondidas, as nossas frutas. Nunca vi nos supermercados a jaca de pobre, a fruta do conde, a ada e o araticum, a pitanga, a groselha, a sapota, o mané velho, o ingá, a romã, o bacupari, a pitomba, o jamacaru da catinga e os rosários de oiricuri. Mas ganhamos frutas exóticas, como o kiwi, a pitaya e a lichia. 

A indústria de alimentos não cansa de inovar. João Dória, quando prefeito de S. Paulo, lançou o programa social “Alimento para todos”, que consistia na distribuição de uma ração liofilizada, balanceada e inodora para famílias carentes, que podia ser ingerida a seco ou com um gole de água, mas que não apetecia nem a cachorros, nem a ratos. 

Comida é cultura e quando se perde seus aromas e sabores se perde também o viço e o visgo de uma sociedade.

 

SSA: A Tarde de 16/05/2021


Paulo Ormindo David de Azevedo nasceu em Salvador,em 1937, filho do antropólogo Thales de Azevedo e da professora de música Mariá David de Azevedo.

Formou-se em arquitetura pela Universidade Federal da Bahia em 1959, fez especialização em “Conservação e restauração de bens culturais” no International Centre for Conservtion and Restoration of Monuments and Sites – ICCROM/UNESCO e doutorado no mesmo campo na Università degli Studi di Roma, “La Sapienza” em 1970, na Itália.
Paulo Ormindo é casado com a arquiteta e professora da UFBA Esterzilda Berenstein de Azevedo e pai de Luciano, Marcelo e Renata Berenstein de Azevedo e de criação de Sergio Ekerman.
Ingressou como Instrutor de Ensino na Faculdade de Arquitetura da UFBA, em 1963, chegando a Professor Titular por concurso em 1996.
Nela fundou o Grupo de Restauração de Arquitetura e do Urbanismo, GRAU, onde realizou, em convenio com o Estado de Sergipe, planos de preservação para S. Cristóvão e Laranjeiras e, com o IPHAN para Cachoeira.
Aposentou-se compulsoriamente da UFBA em 2007.
Deu aulas e cursos em outras universidades brasileira, argentinas e peruanas e apresentou comunicações em numerosos congressos e seminários na América Latina e Caribe.
Trabalhou no IPHAN-BA e foi membro do seu Conselho Consultivo, no Rio de Janeiro.
No Governo do Estado da Bahia coordenou o Inventario de Proteção do Acervo Cultural da Bahia – IPAC-SIC, obra em sete volumes.
Foi consultor da UNESCO realizando missões em toda a América Latina, Caribe e África Lusofone.
É autor de projetos de restauração de monumentos com destaque para o Mercado Modelo, Quinta do Tanque e Pousado do Convento do Carmo de Cachoeira e projetos de arquitetura contemporânea premiados.
Dirigiu o Instituto de Arquitetos do Brasil,- Dep. da Bahia, em dois mandatos e membro fundador do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, CAU-BR, em Brasília.
Foi membro do Conselho de Políticas Culturais do Ministério da Cultura e do Comitê Científico da Red Patrimonio Histórico Iberoamericana - IPHI.
Em 1990 foi eleito para a Academia de Letras da Bahia e é autor dos livros e artigos aqui reproduzidos.
Recebeu os prêmios Rodrigo Mello Franco de Andrade em 1999 e a Medalha Mário de Andrade em 2017, ambos do IPHAN, e a Medalha Edgar Graff, do IAB-BR em 2019.

 

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