MÁRIO DE ANDRADE E O ENCANTAMENTO COM O CARNAVAL
O Papel do Carnaval na Vida e Obra de Mário de Andrade
Valorização da Cultura Popular:
Mário de Andrade dedicou boa parte de sua obra à pesquisa e à celebração das manifestações culturais do Brasil. O Carnaval, com sua energia vibrante, espontaneidade e pluralidade de expressões, representava para ele um espaço onde se encontrava a verdadeira alma brasileira. Essa valorização do popular contrapunha-se aos padrões mais rígidos e conservadores das tradições urbanas, como as vivenciadas na cultura paulista.
Experiência Transformadora:
No relato da carta, o escritor descreve de forma quase extasiada a experiência do Carnaval carioca. Frases como “Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar…” revelam não apenas o desprendimento dos costumes formais, mas também a libertação proporcionada por essa celebração. Para Mário, o Carnaval era um momento de intensa transformação pessoal, onde os limites impostos pela rotina e pela moralidade podiam ser momentaneamente suspensos.
A Carta a Manuel Bandeira: Um Relato do Encanto
A carta que Mário de Andrade escreveu a Manuel Bandeira sobre o Carnaval do Rio de Janeiro em 1923 é um documento vibrante e revelador do impacto que a festa teve sobre ele. Nela, Mário descreve sua experiência de forma entusiasmada, quase eufórica, contrastando sua visão inicial do Carnaval carioca, influenciada por sua mentalidade “paulistamente” mais contida, com a vivência real, cheia de cores, sons, ritmos e alegria espontânea.
Trecho da Carta:
> “Meu Manuel… Carnaval!… Perdi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… Perdi tudo. Menos minha faculdade de gozar, de delirar… Fui ordinaríssimo. Além do mais: uma aventura curiosíssima. Desculpa contar-te toda esta pornografia. Mas… que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio! Que delícia, principalmente, meu Carnaval! […] Meu cérebro acanhado, brumoso de paulista, por mais que se iluminasse em desvarios, em prodigalidades de sons, luzes, cores, perfumes, pândegas, alegria, que sei lá!, nunca seria capaz de imaginar um Carnaval carioca, antes de vê-lo. Foi o que se deu. Imaginei-o paulistamente. […]
Admirei repentinamente o legítimo carnavalesco, o carnavalesco carioca, o que é só carnavalesco, pula e canta e dança quatro dias sem parar. Vi que era um puro! Isso me entonteceu e me extasiou. O carnavalesco legítimo, Manuel, é um puro. Nem lascivo, nem sensual. Nada disso. Canta e dança. Segui um deles uma hora talvez. Um samba num café. Entrei. Outra hora se gastou. Manuel, sem comprar um lança-perfume, uma rodela de confete, um rolo de serpentina, diverti-me quatro noites inteiras e o que dos dias me sobrou do sono merecido. E aí está porque não fui visitar-te. Estou perdoado.”
Essa carta é um testemunho importante da relação de Mário de Andrade com a cultura popular, tema que ele exploraria profundamente em sua obra, incluindo Macunaíma e seus estudos sobre o folclore brasileiro.
Choque Cultural:
Ao comparar a vivência do Carnaval do Rio com a realidade “paulista”, Mário de Andrade evidencia um choque cultural. Ele menciona seu “cérebro acanhado, brumoso de paulista”, enfatizando como a experiência carioca – cheia de sons, cores, movimentos e sensações – despertava nele sentimentos e percepções até então inimagináveis. Essa carta é um documento que mostra o quanto o encontro com a festa popular o impactou, levando-o a redescobrir a alegria e a espontaneidade.
O Espírito Carnavalesco:
O legítimo” usado por Andrade aponta para uma pureza na expressão do Carnaval, que não se prende à sensualidade ou ao lascívia, mas sim à celebração da vida através do canto, da dança e da liberdade. Essa visão idealizada é central para entender por que o Carnaval, enquanto manifestação popular, passou a ocupar um lugar privilegiado em sua trajetória intelectual e artística.
Influência do Carnaval na Obra Modernista
Inspiração para Novas Narrativas:
O fascínio de Mário de Andrade pelo Carnaval foi decisivo para a formação de uma estética que celebrava a diversidade cultural e a espontaneidade das tradições brasileiras. Esse encontro com o “puro” carnavalesco ecoa em outras obras modernistas, como em Macunaíma, onde o autor constrói uma mitologia brasileira a partir de elementos folclóricos e populares.
Documentação e Pesquisa:
Além de sua produção literária, Andrade se dedicou à pesquisa e à documentação das manifestações culturais do Brasil, incluindo o Carnaval. Seus estudos ajudaram a legitimar a cultura popular como objeto de interesse acadêmico e artístico, contribuindo para que o folclore brasileiro ganhasse o reconhecimento que merece.
Legado Cultural
A carta a Manuel Bandeira não é apenas um relato pessoal de um momento de êxtase e libertação, mas também um testemunho da mudança de paradigma cultural que ocorria no Brasil do início do século XX. Mário de Andrade, ao se deixar levar pelo espírito carnavalesco, simboliza a ruptura com modelos importados e a afirmação de uma identidade cultural própria – vibrante, diversa e, sobretudo, popular.
Em síntese, a experiência do Carnaval no Rio, conforme vivida e narrada por Mário de Andrade, exemplifica como o contato direto com as tradições e festividades brasileiras pode transformar não só a visão de mundo de um indivíduo, mas também influenciar profundamente a cultura e a literatura de um país. Essa abordagem continua a inspirar estudiosos e artistas na valorização das raízes culturais brasileiras e na busca por uma expressão artística que seja, de fato, autêntica e representativa do povo.
Referência:
MORAES, M. A. (org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: EDUSP, 2002, pp.84-85.
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