DO GRÃO À BARRA: MULHERES DA INDÚSTRIA DO CACAU BUSCAM PRODUÇÃO JUSTA E SUSTENTÁVEL DO CHOCOLATE
Por Nathália Geraldo
Mulheres se unem para promover um movimento e um modelo de negócio que seguem na contramão dos abusos da indústria tradicional do cacau; valorizando as pessoas e a floresta
Talvez um dos alimentos alimentos mais populares do mundo, com consumo global, o chocolate seja também o do qual menos conhecemos os processos de fabricação, as questões de mercado e as altas e a flutuação do cacau frente a crises econômicas, climáticas e territoriais. Descobrir de onde é o cacau que está dentro daquela barrinha que compramos para comer em uma sexta-feira à noite, então, parece algo distante.
A desinformação sobre a cadeia produtiva da amêndoa – que tem a África Ocidental como a maior região produtora do mundo, e, no Brasil, os estados do Pará e da Bahia como as principais – parece ser inevitável. Mas, não é. Mulheres à frente de fábricas de chocolate fino, de pesquisas acadêmicas e de estratégias de negócio como o tree to bar e o bean to bar (o primeiro se refere a um modelo em que a mesma empresa cuida do cultivo do cacau até o produto final, e o segundo, dos grãos de cacau até o produto final) dão um nó nessa lógica a fim de criar uma indústria com mais qualidade e justiça, especialmente socioambiental.
É curioso, mas não surpreendente que essas iniciativas sejam comandadas por mulheres. A professora da USP Mariana Bueno de Andrade Matos estudou no doutorado a autenticidade das experiências de turismo nas fazendas de cacau do sul da Bahia e, mais recentemente, integrou o time exclusivamente feminino que escreveu o livro Onde Cresce o Chocolate – A cena tree to bar e bean to bar contada por mulheres do negócio (128 páginas, à venda pelo Instagram das autoras).
A Marie Claire, Mariana conta que, na roça, predomina a figura masculina; já nas fazendas, as lideranças são de mulheres. “Na minha pesquisa, as fazendas que tinham elas à frente se adiantaram para uma produção de cacau mais fino; e, assim, se tornaram mais rentáveis”, analisa. “No movimento do chocolate bean to bar, definitivamente as mulheres são mais sensíveis à sensibilidade desse processo, que faz parte de um movimento gastronômico que, por sua vez, visa a proteção do ambiente e das questões humanas.”
Isso significa ir na contramão: enquanto a indústria tradicional se vê envolta em situações como disputa de territórios, condições de trabalho análogas à escravidão ou trabalho infantil nas áreas rurais e a invariável relação das mudanças climáticas com o preço das safras, além de, para baratear a produção, reduzir a quantidade de manteiga de cacau dos ingredientes e inserir mais gordura hidrogenada no lugar, a produção justa do chocolate se preocupa com o sabor, as pessoas e a floresta, os dois últimos, protagonistas dessa história.
“A gente vende floresta em pé"
Quem aposta nessa visão é Luisa Abram, sócia-fundadora de uma marca de chocolate produzido com cacau selvagem amazônico e que leva seu nome. Luisa estudou gastronomia e, em 2014, percebeu que o cacau fino poderia ser um caminho diferente daquele trilhado pela indústria de massa. “Descobri uma cooperativa no Acre, fiz a primeira viagem para lá no mesmo ano e vi que era um cacau especial. O cacaueiro é uma árvore preservacionista, porque precisa da flores para ter sombra, crescer, dar flores e frutificar. Então, notei que fazer o chocolate a partir daquela amêndoa seria não só ter um produto bom para vender. Também era vender a ideia de manter uma floresta em pé.”
A empreendedora tem no portfólio barras, cremes e drágeas que têm como matéria-prima o cacau colhido por seis comunidades na Amazônia, que vivem na beira de rios como Purus, Joá, Caciporé, Acará e Tocantins. Alguns deles, aliás, dão nome aos chocolates vendidos por Luisa. “Cada região imprime um sabor diferente, por exemplo, floral, cítrico, de frutas vermelhas; e isso depende da espécie do cacau, o terroir [a característica ligada à origem geográfica da amêndoa], e dos processos pós-colheita, como a fermentação e a secagem”, explica.
Para que a qualidade se mantenha, aliás, os trabalhadores locais são capacitados pela empresa para realizar essa etapa ali mesmo, na região em que moram. Na fabricação das gigantes do chocolate, o cacau passa só por uma etapa de secagem, em que os sabores não são desenvolvidos. “Por isso, eles colocam saborizantes e outras coisas, para mascarar o gosto amargo da amêndoa.”
“As empresas maiores não chegam no cacau selvagem. A logística é complicada. Não tem porque elas fazerem algo que vá encarecer o produto, sendo que a commodity é barata. Outra barreira é a linguística, já que o Brasil é o único país da Amazônia em que se fala português.” Luisa é uma das mulheres que correm contra o fluxo, ao lado de outras como a cacauicultora baiana e chocolate maker, como gosta de ser chamada, Juliana Aquino. Herdeira de uma fazenda de cacau no Vale Potumuju, no sul da Bahia, e sócia-proprietária da marca Baianí, ela atua na área há 11 anos, quando retomou as atividades do lugar, que estava parado e com dívidas. Para ela, o trabalho do cacau feito por mulheres resulta em uma produção mais atenciosa.
“Temos duas funcionárias no pós-colheita, e há uma diferença nesse cuidado, algo mais sensorial”, avalia. Vivendo a realidade do bean to bar há tanto tempo, ela acredita que o futuro desse tipo de chocolate passa por educar o consumidor sobre as diferenças de sabor em cada barra. “Esse público ainda é muito incipiente.”
Para isso, é preciso força dentro do mercado – algo que as mulheres provam ter de sobra. “Vejo de perto o quanto elas trabalham coletivamente. Estão o tempo todo trocando figurinhas. Já entenderam que juntas são mais fortes e esse recorte de gênero é bem representativo”, considera Mariana.
Fonte: Marie Claire
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