Patricia Aguirre: "Nossa comida é terrivelmente homogênea e chata"

Por Sônia Santoro

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Mudando a comida para mudar o mundo (Capital Intelectual) e sobre ele e suas mais de três décadas de experiência no assunto ele fala nesta entrevista.

Não é um problema de escassez, diz o especialista, mas um problema de má distribuição e produção concentrada por uma indústria de alimentos que se orienta apenas pelo lucro e por um Estado que controla pouco ou nada. 

Comemos mal, produzimos mal e distribuímos mal os alimentos. Estamos exagerando no planeta e destruindo-o a tal ponto que "é provável que tenhamos excedido suas propriedades autopurificantes". 

Não é um problema de escassez, é um problema de má distribuição e produção concentrada por uma indústria alimentícia que se orienta apenas pelo lucro e por um Estado que pouco ou nada controla. 

A covid nada mais é do que a confirmação de que o sistema agroalimentar e a economia política precisam mudar. “Esse sistema agroalimentar e sua sinergia com o sistema político-econômico geram uma forma de nos alimentarmos, uma cozinha e uma refeição que determinam a forma como adoecemos e morremos”, diz.

--O covid confirmou sua hipótese sobre como a forma como comemos está matando o planeta?

--Sim. Eu realmente acredito que se tivéssemos visto o sistema agroalimentar e sua sinergia com o sistema político econômico, teríamos conseguido com grandes critérios evitar o aparecimento não só da covid, mas das oito grandes epidemias que sofremos desde meados do século XX e do qual o covid foi como a cereja do bolo. Porque essas pandemias têm origem alimentar. Com a gripe suína, a gripe aviária é absolutamente clara para nós. Este sistema agroalimentar e a sua sinergia com o sistema político-económico geram uma forma de nos alimentarmos, uma cozinha e uma refeição que determinam a forma como adoecemos e morremos.

O livro é um olhar holístico, sistêmico, procedimental, crítico e relacional sobre a forma como nos alimentamos e neste livro coloco ênfase no que acontece com o ecossistema quando decidimos, não individualmente, mas como sociedade, tomar esse tipo de de modelos agroalimentares. De tal forma que estamos a devorar o planeta porque tanto da produção como da distribuição e do consumo, em todas as vertentes do sistema agroalimentar estamos a comer o planeta de forma voraz, impensada e claro que insustentável.

--Você acha que a pandemia trouxe um pouco mais de conscientização sobre isso?

--Acho que temos que falar sobre covid. Não é que não tenha havido conversa nos últimos dois anos.

Mas escolheu-se uma forma de comunicação por meio das figuras, e as figuras contam, mas não narram, e o ser humano, para construir nossa identidade, construir nossa memória coletiva, precisa de narrativas. Os números são extremamente importantes para sistemas especialistas acima de tudo, não podemos deixar de produzir números porque são a base de estudos estatísticos, sem dúvida muito importantes e nos permitem uma compreensão acadêmica do processo extraordinário, mas para a pessoa comum, para você e para mim, precisamos de algo mais.

Precisamos de narrativas. É assim que conectamos nossa narrativa pessoal a essas narrativas coletivas. Construir uma memória coletiva sobre o covid, na minha opinião, é super importante porque não há garantia de que o covid deixará uma marca na memória coletiva. Muita gente morreu de gripe suína, muita gente morreu de gripe aviária, votamos em plena pandemia em 2008. 

Fui votar com máscara e luvas de látex. Nós esquecemos disso. E o que aconteceu? Essas pandemias anteriores poderiam ter servido para nos alertar, para nunca ter chegado a essa pandemia, mas não foi gerada uma memória coletiva sobre elas. E o que aconteceu? Essas pandemias anteriores poderiam ter servido para nos alertar, para nunca ter chegado a essa pandemia, mas não foi gerada uma memória coletiva sobre elas. 

E o que aconteceu?

Essas pandemias anteriores poderiam ter servido para nos alertar, para nunca ter chegado a essa pandemia, mas não foi gerada uma memória coletiva sobre elas.

--Era necessário tentar entender por que chegamos a isso...

--China trató de ocultarlo como en la mal llamada gripe española de 1918. En esos años, Francia, Inglaterra, Alemania intentaron tapar lo evidente, la difusión extraordinaria de esa gripe supermortal de la que nadie sabía nada, porque acababa de terminar la Primera Guerra Mundial. Os países envolvidos na guerra disseram: por favor, acabamos de assinar, que isso não seja mais um mal da trincheira, então eles disseram que acabou, não é nada. A Espanha, que não esteve envolvida na guerra, registrou e denunciou e disse: isso é algo absolutamente novo, terrivelmente contagioso que tem tais e tais características e por isso foi chamado de gripe espanhola. E dois anos depois a memória coletiva havia desaparecido. Se supõe quea gripe espanhola matou cerca de 57 milhões de pessoas, o que hoje projetado com a população atual seria equivalente a entre 500 e 600 milhões de mortes. Foi um drama social extraordinário e não gerou memória coletiva.

--Não há registros.

--Na guerra há um Monumento aos Caídos, hoje é o dia da invasão da Europa, hoje é a queda... são eventos sociais que geram memória. A memória do heroísmo é sustentada pelos Estados, gera arte, marca o tempo, marca o espaço. Em vez disso, com a pandemia não.

--Neste momento de volta à "normalidade" parece que não aprendemos muito. Por exemplo, a questão do atendimento presencial total no trabalho, acho que é um retrocesso se pensarmos globalmente. Não ir ao escritório todos os dias não só dá qualidade de vida às pessoas que podem optar por fazê-lo, como também produz menos circulação na cidade e os efeitos são globais.

--Por isso acho que temos que falar de covid e não fazer da pandemia uma soma de épicos individuais. E isto: por que temos que voltar cem por cento ao atendimento presencial, por que não aprendemos alguma coisa. Durante o tempo da pandemia, a poluição diminuiu, a qualidade de vida de quem estava dentro melhorou.

• O que devemos aprender sobre como comer, como produzir?

--Teríamos que aprender que não somos os reis da criação, somos mais uma espécie no concerto de espécies deste planeta e que é o único planeta que temos. E realmente abusamos dela pensando que era infinito: o mar era infinito, a terra era infinita. Bem, não foi infinito e de fato a mudança climática já é um terrível aviso sobre isso, é muito provável que tenhamos  ultrapassado as capacidades de autopurificação do planeta.

--Você diz que comemos ocnis (objetos comestíveis não identificados), como mudar o que comemos ou a maneira como comemos ajuda a mudar isso?

--Se nos conscientizarmos de que foi a ação humana que gerou essa mudança que vai nos matar --porque não só pode destruir nossa sociedade como a conhecemos, como pode pôr em perigo a espécie humana--, também podemos fazer algo para reverter isso. 

Eu acredito que, como todo bastão, tem dois pontos, então um é o assunto, todos eles. Podemos fazer algo para reverter isso, mas o outro lado são as instituições, elas não podem ser os sujeitos como indivíduos atomizados fazendo as coisas por conta própria.

-- Levanta no livro que a mudança tem que ser integral. Por exemplo, embora existam produções de alimentos orgânicos, se os cultivos orgânicos são cultivados em um campo e não no outro, realmente manter essa produção sem agroquímicos é muito difícil.

--Assim é. Por isso insisto que a mudança tem que ser do sujeito para as estruturas e das estruturas para os sujeitos. Não é suficiente para todos nós nos tornarmos orgânicos. Além disso , as instituições têm que dar, por exemplo, créditos, mas não para plantar transgênicos, o que hoje é feito com créditos do Banco Provincia. As instituições devem favorecer a horticultura, o plantio de culturas orgânicas, a produção pastoril de carnes sem drogas. O Estado deve ditar os regulamentos que premiam a produção limpa, o consumo orgânico, a distribuição equitativa.


--Para isso, o paradigma deve ser mudado, para que não seja apenas o lucro que determine a viabilidade dos projetos de produção.

--A lógica do desenvolvimento a qualquer preço, veja o que nos trouxe, veja a pandemia. A China é um exemplo claro de um país que se desenvolveu em muito pouco tempo a qualquer custo. 

Os níveis de contaminação na China são monstruosos e aqui está o exemplo, com o covid fica claro para nós que a fronteira agrícola não pode ser estendida ao infinito, porque por exemplo encurralamos espécies, porque colocamos em contato espécies como pangolins e morcegos , antes separados por barreiras ecológicas e encurralamos a população, empobrecemos não só o habitat, mas também a população; a população recorre às suas poucas proteínas que podem comprar nos mercados de sangue onde os pobres animais produzidos pela maioria deles da casa furtiva com morcegos e pangolins, neste caso, são mantidos vivos em pequenas gaiolas em condições higiênicas deploráveis. São mercados de pobreza. 

Isso não é exclusivo da China, toda a América Latina, todas as áreas pobres têm esses mercados de pobreza alimentados por caçadores furtivos de animais nativos deslocados de seu habitat pela soja, arroz ou qualquer outra cultura comercial. Isso não é grátis. Neste caso vimos claramente o quão perigoso é colocar espécies e seus patógenos. Os patógenos ultrapassam a barreira das espécies e muitos deles evoluíram para nos infectar. Na realidade,

Então, acho que temos que deixar muito claro que não é gratuito destruir o meio ambiente. Nós humanos, por essa lógica do lucro, tratamos, maltratamos todos os ambientes, toda a diversidade de ambientes do nosso belo planeta, tentando construir um ambiente único. 

Os patógenos ultrapassam a barreira das espécies e muitos deles evoluíram para nos infectar. Na realidade.

Então, acho que temos que deixar muito claro que não é gratuito destruir o meio ambiente. Nós humanos, por essa lógica do lucro, tratamos, maltratamos todos os ambientes, toda a diversidade de ambientes do nosso belo planeta, tentando construir um ambiente único. 

É uma grande planície aluvial gigantesca que é onde crescem as plantas, os cereais que são a base da dieta atual. Então existe uma bela floresta com milhares de espécies por metro quadrado. Ah, não, ateamos fogo, cortamos, cortamos, achatamos e vamos plantar milho lá. E isso não é gratuito.

Falei com governadores de algumas províncias que tiveram a sorte minha e a desgraça deles de ter florestas ou selvas, e os caras disseram "temos que tornar produtivo" e eu disse "já é terrivelmente produtivo". Não é produtivo sob a lógica do lucro, mas os serviços ecossistêmicos prestados por uma floresta, fornecidos por um pantanal, são gigantescos.

--Você também questiona a falta de diversidade, monoculturas e essa ideia de que podemos comer qualquer coisa, o ano todo, mesmo de áreas muito distantes.

--O pomar crioulo era diversificado. As mulheres eram responsáveis ​​pelo jardim nos tempos coloniais. Em Buenos Aires, assim como no México, o jardim associado à cozinha era um jardim diversificado. Os mexicanos plantaram o milho, no milho foi plantado o feijão, o feijão e a abóbora, que está rastejando, entre as raízes do milho naquele triângulo.

Então, no mesmo lugar, aproveitando as características de diferentes plantas, você tinha milho que dava amido, carboidratos, leguminosas, grande fornecedora de ferro e minerais, algumas proteínas, e tinha abóbora, grande fornecedora de açúcares e fibras. Essa inteligência é destruída pela agricultura científica porque a monocultura é mais fácil, mais lucrativa.

--Há também um conhecimento que perdemos tanto para comer quanto para cozinhar.

--Esse conhecimento não foi valorizado. Tive que aprender a jardinar. Lembro da minha avó, ela morava no Parque Chacabuco, e plantava rosas com ervilhas, cenouras com sininhos em vasos. Fazia parte do esquema dela, como filha de imigrantes italianos, ela tinha essa ideia de que mesmo não tendo terra, você tinha que produzir um pouco da sua comida. 

Quando crianças, aprendemos pela primeira vez o valor de produzir um pouco de sua própria comida e a alegria de consumir seus próprios produtos. E então eles eram o parâmetro do que você iria comprar. Todas essas coisas foram desvalorizadas, assim como o trabalho das mulheres foi desvalorizado.

Todas essas coisas foram desvalorizadas, assim como o trabalho das mulheres foi desvalorizado.

--A questão é que o papel de cozinhar só recai sobre as mulheres.

--Esses papéis rígidos eram papéis de sobrevivência, o mundo mudou, a cultura mudou, a cozinha mudou e em determinado momento nós mulheres pensamos que poderíamos quebrar esse mandato e fazer outras coisas e é muito bom. O que não deve ser quebrado é a cozinha. Não importa quem cozinha, mulheres, homens, desde que seja uma pessoa, desde que a atividade seja feita de maneira ponderada, racional, desde que seja bem feita, quem quiser faz, quem quer que encontra nessa atividade, uma manifestação de seus próprios traços. Não importa quem, mas não culpe a cozinha. Não vamos evitar cozinhar porque senão aquele lugar vai dominar, como tomou, a indústria.


--O mercado e os anúncios.

--E a única racionalidade da indústria alimentícia é o custo benefício. Nós que temos que exigir do nosso Estado é que ele regule. Os alimentos não devem ser apenas seguros, devem ser saudáveis. Hoje nossa comida está cheia de substâncias cosméticas, em muitos casos corantes, gelificantes, aromatizantes, que depois de muitas décadas de uso se descobrem cancerígenos, descobre-se que são a base de quem sabe que mal. 

Então é por isso que eu digo que essa mudança não pode vir apenas das pessoas. Posso estar muito disposto a cozinhar, mas se não tiver alimentos saudáveis ​​para escolher, minha cozinha vai ser uma cozinha tóxica, tão tóxica quanto a comida que coloco nela, e para isso preciso das regulamentações do Diga que eles dizem que você não precisa produzir alimentos de uma determinada maneira.

Eu preferiria que fossem orgânicos. Eu preferiria que estivessem com o mínimo de processamento necessário para serem transportados com segurança e saúde de um lugar para outro.


--No livro você também propõe não ir a extremos na alimentação, nem vegetariana nem vegana.

--Acredito que a dieta tem que ser diversificada. Acredito que, ao contrário do que nos diz a publicidade da indústria, a nutrição humana tem se tornado cada vez mais homogeneizada. Acreditamos que porque entramos no supermercado e vemos milhares de contêineres, há diversidade. É verdade, o que acontece é que todos os nossos contêineres dentro têm o mesmo.

Hoje comemos trigo, milho, arroz, soja, batata, essas cinco espécies respondem por 60% do comércio mundial , nossa alimentação é terrivelmente homogênea e chata. Claro, a indústria vai tomar conta e fazer um pudim com farinha de trigo e fazer biscoitos e fazer folhinhas para o cereal matinal, vai fazer pão, mas é sempre farinha de trigo. É sempre farinha de trigo ou desculpa, algum carboidrato, alguma gordura, ou seja, gordura, açúcar e sal. É isso que não falta em nenhuma preparação industrial, mesmo que sejam tomates naturais.

Bem, aquela produção industrial é muito boa para vender, não é muito boa para comer. Isso traz muitos lucros para a empresa e muitos prejuízos para o restaurante.

--O que fazer?

--Não temos que destruir a indústria, temos que regulá-la, têm que ser outras bases e de fato está mudando. Na verdade, há muitas pessoas empenhadas em produzir de outra forma e consumir de outra forma. Como consumidores, teríamos que recompensar quem produz bem e seria muito interessante se nossos Estados vestissem as calças e começassem a regular em favor dos comensais.

--A lei de rotulagem frontal iria nessa direção.

--Sim.


-- Você também fala sobre a solução não ser voltar atrás, para uma “ilusão pastoral”.

--Lembro que sem indústria, sem agricultura científica, não teríamos disponibilidade plena, o que acontece é que precisamos de outra agricultura científica, não de monocultura, química, transgênica, precisamos de agricultura científica agroecológica. A agroecologia é uma ciência, não é uma nuvem hippie. Então precisamos produzir de outra forma e a agroecologia é uma das muitas, cuidado, não é a única. 

Eu gostaria que a iniciativa 30/30 das Nações Unidas fosse cumprida, o que significa que 30% do planeta se tornará selvagem até 2030. Reconstruir aquela floresta que foi derrubada com suas árvores nativas, dar a ela a oportunidade de se reproduzir com as árvores nativas lá. Hoje existem metodologias científicas para que não demore 200 anos, mas sim 20.

Fonte: Página12

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