Brasil: Descobertas sobre primeiros assentamentos ameríndios podem mudar narrativa arqueológica

Por Márcia Bechara

Uma dupla franco-brasileira de pesquisadores publicou um documento que registra uma série de descobertas valiosas sobre os primeiros assentamentos ameríndios no Brasil. 

Utensílios encontrados em uma caverna no norte do México evidenciam que os seres humanos viviam na América do Norte há mais de 30.000 anos, ou seja, 15.000 anos antes do que se pensava - de acordo com pesquisas arqueológicas.

"O trabalho do [paleontólogo dinamarquês Peter Wilhelm] Lund é pioneiro no comecinho do século 19, quando a disciplina da pré-história estava sendo construída", lembra Lucas Bueno, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com especialização em arqueologia brasileira. "Foi quando ele desenvolveu essas pesquisas no Sumidouro (Minas Gerais) mostrando já uma antiguidade bastante significativa para a ocupação das Américas. Isso mostra como as pesquisas no Brasil, naquele momento, poderiam desenvolver um papel significativo na discussão sobre a dispersão do homo sapiens no globo", aponta.

As amostras encontradas, entre elas 1.900 ferramentas de pedra entalhada, evidenciam uma ocupação humana na caverna de Chiquihuite, no norte do México, que data de 33.000 anos, e que durou cerca de 20.000 anos, destacam dois estudos publicados na revista Nature.

"Nossa pesquisa traz novas evidências sobre a presença antiga de seres humanos nas Américas", o último continente ocupado pelo homem, saudou o arqueólogo Ciprian Ardelean, principal autor de um dos dois estudos.

Os espécimes mais antigos encontrados nesta caverna, localizada em grandes altitudes e escavada desde 2012, foram datados com radiocarbono (ou carbono 14) em um intervalo entre 33.000 e 31.000 anos antes de nossa era. "São poucos, mas estão lá", comentou o pesquisador da Universidade Autônoma de Zacatecas, no México.

"A gente quis resgatar essa contribuição do Lund e mostrar como desde o começo dessa discussão, em termos acadêmicos, o Brasil poderia – e deveria – ter um papel proeminente nessa disciplina, pensando no contexto sul-americano", explica o especialista.


"Nossa ideia é resgatar esse papel do Brasil [na disciplina]. Temos dados super relevantes, específicos e únicos para o continente, resultado de pesquisas realizadas no Brasil. Por uma série de questões envolvidas na produção de conhecimento acadêmico, como barreiras linguísticas, muitas publicaões acabam sendo pouco divulgadas e aceitas no stablishment acadêmico. Queríamos trazer para o grande público uma série de questões novas", lembra Bueno.


"Desde meados do século 20, uma série de pesquisas realizadas no Nordeste e no Centro-Oeste do Brasil mostram evidências de ocupações anteriores ao último máximo glacial, há mais de 20 mil anos, o que, de uma certa maneira, entra em conflito com a principal proposta hegemônica [da Arqueologia], construída pela academia norte-americana, que propunha uma ocupação não tão antiga para as Américas", sublinha o pesquisador. "No entanto, temos esses sítios [arqueológicos] no Brasil que, há meio século, apresentam origens chegando até a 30 mil anos. Coisas muito anteriores ao que a teoria [acadêmica] mais aceita ainda propõe", afirma.


"Humanidade veio dos Trópicos"


“É importante enfatizar a antiguidade e a profundidade temporal de uma história relacionada aos povos ameríndios, os povos originários das Américas”, destaca Bueno. “Não é de ontem que eles estão aqui. Estão há milhares de anos construindo territórios, paisagens que certamente foram um legado que nos chega até hoje. Essas são questões relativamente novas que estão sendo apresentadas no âmbito dessa discussão. De um lado, a antiguidade dessa ocupação, que tem contribuições que podem rever as propostas e modelos gerais sobre povoamento da América, e, do outro lado, o contexto contemporâneo, que reforça a ligação dos povos ameríndios com a América do Sul e esse lugar que a gente chama de Brasil”, destaca.

As origens dos primeiros ocupantes da América são calorosamente debatidas entre antropólogos e arqueólogos. Por décadas, a tese mais aceita foi a de um assentamento de 13.000 anos correspondente ao chamado período Clovis, considerado há muito a primeira cultura americana da qual se originaram os ancestrais dos nativos americanos.

Essa teoria do cultivo inicial de Clovis é questionada há 20 anos, com novas descobertas que atrasaram a idade dos primeiros assentamentos, mas apenas até 16.000 anos.

Portanto, é provável que os resultados desta pesquisa sejam muito contestados. "Isso acontece assim que alguém encontra sites com mais de 16.000 anos: a primeira reação é negação ou aprovação forte", disse ainda o pesquisador.

Quanto ao caráter político das novas descobertas, Antoine Lourdeau diz que “na visão clássica da nossa disciplina, o que foi chamado de ‘pré-história’ foi definido a partir dos padrões europeus”. “Existem percepções que são ligadas a essa visão europeia, como a questão dos ritmos dos ciclos glaciais e o fato das populações terem passado por momentos de frio extremos. Isso, num ambiente tropical, não tem o mesmo significado. Esses ciclos de aquecimento e resfrio existiram nos trópicos como no resto do mundo, mas, por exemplo, não tiveram as mesmas consequências”, explica.

"É preciso repensar esse passado remoto não mais somente usando as referenciais europeias, mas trazendo elementos vindos dos trópicos, que são muito interessantes para repensar a nossa trajetória humana. No final, viemos todos dos trópicos. O início da Humanidade, seja na África, seja na Ásia, a maioria das espécies de hominídeos surgiram em ambientes tropicais”, detalha o pesquisador francês.


Fonte RFI



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