UMA CARTA PARA BORGES (13 de junho de 1996, Nova York)

Leia a carta de amor de Susan Sontag para Borges, escrita 10 anos após sua morte.

O que torna o trabalho de Susan Sontag tão duradouro não é apenas sua sabedoria, nem sua eloquência, mas o brilhantismo de seu gosto.

Deixe-me colocar desta forma: ela sabia o que era bom, e sabia como falar sobre o que era bom, mesmo (especialmente) quando outros podiam discordar, quando era o "bom gosto do mau gosto", como ela famosamente chamava as glórias do camp.

Então não é de se surpreender que ela amasse Jorge Luis Borges — embora ninguém ousasse argumentar que ele tinha mau gosto, veja bem. Sontag não era apenas admiradora literária de Borges, é claro, mas sua amiga, e dez anos após sua morte, ela lhe escreveu uma carta. Nela, ela fala sobre sentir falta dele, é claro, assim como sobre seu amor por livros e literatura em geral, e “a morte da interioridade” que ela previu que viria dos livros se tornando textos imediatamente acessíveis e infinitamente alteráveis ​​— isto é, apenas “outro aspecto de nossa realidade televisiva movida a publicidade”. Eu me pergunto o que Sontag e Borges diriam se estivessem vivos hoje, mas, infelizmente, teremos que olhar para as palavras que eles já escreveram para orientação.

Emily Temple

Caro Borges,

Como a sua literatura sempre se situou sob o signo da eternidade, ela não parece velha demais para que eu lhe envie uma carta (Borges, são dez anos!). Se existiu algum contemporâneo destinado à imortalidade literária, foi você. Você foi um perfeito produto de sua época, de sua cultura, de um modo que parece inteiramente mágico.

(...)

Você deu às pessoas maneiras novas de imaginar, ao mesmo tempo que proclamava sem cessar nossa dívida com o passado, acima de tudo, com a literatura. Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Eles nos dão também o modelo da autotranscendência.

(...)

Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma espécie ameaçada. Por livros, refiro-me também às condições de leitura que tornam possível a literatura e seus efeitos na alma. Em breve, nos dizem, invocaremos em "telas-livro" quaisquer "textos" que quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, "interagir". Quando os livros se tornarem "textos" com que "interagiremos" segundo o critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Este é o glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais "democrático". É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade - e do livro.

Para essa transição, não haverá nenhuma necessidade de uma grande conflagração. Os bárbaros não precisam queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Caro Borges, por favor compreenda que não me dá nenhum prazer queixar-me. Mas a quem melhor que você poderiam ser endereçadas tais queixas sobre o destino dos livros - da própria leitura? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Eu sinto sua falta. Você continua a ser importante. A era em que estamos entrando agora, este século XXI, porá a alma à prova de maneiras novas. Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E você continuará a ser o nosso patrono e nosso herói.


SUSAN SONTAG (1933 - 2004)

@elcocineroloko

Comentários

Postagens mais visitadas