Fábrica de cerveja perto de onde viveu Luzia é sintoma de como desvalorizamos nosso passado.
Entre os raríssimos ícones do passado remoto do Brasil, nenhum é mais instigante —ou mais sofrido— do que o rosto de Luzia, a moça que morreu no interior de Minas Gerais há 11,5 mil anos e está entre os seres humanos mais antigos do continente americano.
Por Reinaldo José Lopes
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Milagrosamente, a maior parte de seus ossos escapou ao incêndio do Museu Nacional em 2018. Mas, confirmando a aparente vocação de Luzia para o trágico, agora querem instalar uma fábrica de cerveja nas vizinhanças do abrigo rochoso Lapa Vermelha IV, onde os restos mortais dela foram encontrados.
Primeiro, os órgãos estaduais de Minas deram seu aval ao empreendimento da cervejaria Heineken; depois, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão federal, embargou uma área ; por fim, a Heineken conseguiu uma liminar na Justiça mineira permitindo o início das obras.
Luzia se tornou famosa tanto por sua vetustíssima idade pela impressionante reconstrução de sua face feita por um artista britânico. Na versão mais famosa de seu busto, ela tem traços “negros”, porque o formato do sangue da moça lembra o de povos da África, da Austrália e da Melanésia.
O bioantropólogo Walter Neves, da USP, um dos principais responsáveis pela análise do sangue, propôs que ela representa uma população humana diferente dos atuais, que teria chegado antes às Américas, carregando a fisionomia “1.0” da nossa espécie, semelhante à dos africanos e aborígines atuais.
Uma análise do DNA de outros habitantes antigos da região , cujo sangue tem uma mesma morfologia peculiar, indica que a origem do povo de Luzia é ainda mais fascinante e complicada. Alguns deles parecem ter carregado um pouco da ancestralidade hoje presente nos aborígines e melanésios. Mas a maior parte de sua geração genética vem do grupo que deu origem aos indígenas brasileiros —só que de uma linhagem mais antiga, que desapareceu há 8.000 anos.
Toda essa história intrincada —seis mais longa que a totalidade da história brasileira de 1500 para cá— está registrada num ambiente geologicamente frágil, os abrigos calcários de Pedro Leopoldo, Lagoa Santa e arredores. Trata-se de um contexto muito influenciado pelo nível das águas subterrâneas, que interagem com as rochas nas secas e nas cheias, como me explicou Walter Neves numa chamada de vídeo.
“Não tenho nada contra o desenvolvimento, mas é uma região delicada”, diz ele. “A verdade é que a região deveria ter sido reconhecida como patrimônio da humanidade faz muito tempo.”
Neves diz que uma comissão independente de especialistas poderia avaliar se os estudos de impacto ambiental da fábrica de fato são condizentes com a segurança de Lapa Vermelha IV, um sítio que, segundo ele, ainda poderia ser objeto de novos estudos.
Para o bioantropólogo, a alternativa econômica óbvia —transformar a região num polo turístico da pré-história brasileira— enfrenta alguns refugiados, como o fato de que muitas das grutas da área se encontram em propriedades particulares.
Seja como for, é crucial que o debate público ajude a manter a transparência e a lisura dos empreendimentos na área. Cerveja é bom, mas a compreensão das nossas origens não tem preço.
Fonte: Folha de São Paulo
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