Biodiversidade do cerrado inspira os brasilienses tanto na biomedicina quanto na gastronomia

Além de saborosos, os alimentos são nutritivos e podem salvar vidas.

Por Ana Maria da Silva*


Como diz o poeta e ambientalista Nicholas Behr: “Nem tudo que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado”. De fato, as tortuosidades cerratenses demandam um olhar mais atento e carinhoso por parte dos brasilienses, uma vez que muitos não conhecem a diversidade e potencialidade das especiarias típicas do bioma. A grandiosidade do cerrado se traduz por sua biodiversidade. Segundo dados do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), temos a savana mais biodiversa do mundo, com aproximadamente 12 mil plantas catalogadas, das quais mais de 4 mil são endêmicas, ou seja, se encontram somente nessa área geográfica.

O percentual de espécies bastante expressivo torna o bioma insubstituível, conforme explica o especialista em frutíferas do cerrado e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Marcelo Kuhlmann Peres. “O cerrado é um mosaico de vegetação, com diferentes fitofisionomias e tipos de solo. Cada espécie está adaptada a crescer em determinado ambiente, que varia basicamente dos fatores luminosidade, fertilidade do solo e água”, afirma.

Para cultivar espécies nativas da flora do cerrado é preciso conhecer quais as demandas que as plantas necessitam. “É importante saber a especialidade de cada uma”, diz Marcelo, que alerta sobre o extrativismo exacerbado.“Por isso, o estabelecimento de cooperativas regionais para o manejo e extrativismo sustentável das plantas nativas é importante e, talvez, a melhor forma de trabalhar com o uso da flora do cerrado. Isso costuma unir as pessoas das comunidades em torno de um ideal comum e organiza e distribui os recursos de forma mais justa”, sugere.

Para que haja maior valorização, Marcelo diz que o primeiro passo para a conservação do bioma é o conhecimento. “Conhecer as suas espécies, as relações ecológicas, sua importância ambiental, as comunidades e povos tradicionais, pode ter potencial econômico. Mas é importante viver de forma sustentável nesse bioma, que é um dos mais ricos e antigos do planeta”, afirma. Essa “forma de viver” inclui o ser humano como parte do ecossistema. “Isso envolve a participação da população como um todo, desde pesquisadores, produtores rurais, instituições, tomadores de decisão e consumidores. Devemos ser a mudança que queremos ver no cerrado”, acredita.

Com sabores fortes e característicos, as especiarias cerratenses têm um papel medicinal fundamental hoje, aspecto que tem sido explorado pelos pesquisadores do bioma. Segundo o ISPN, o cerrado possui mais de 220 espécies conhecidas para uso medicinal e alimentício. Dentre elas destacam-se: pequi, buriti, mangaba, cagaita, bacupari, araticum, babaçu, bacuri, cajuzinho-do-cerrado, coquinho-azedo, gueroba, murici, jatobá, mangaba e baru.

A engenheira florestal especialista em ecologia e distribuição das árvores do cerrado, e colaboradora do Centro de Estudos Avançados do Cerrado da Universidade de Brasília, UnB Cerrado Renata Dias Françoso explica sobre o uso medicinal: “Seguramente há várias dentre as mais de 500 espécies com potencial medicinal no bioma. O barbatimão merece destaque, sendo usado na medicina tradicional no tratamento de diarreia, hemorragia, inflamação e até no tratamento alternativo de anti-HIV. Espécies ricas em flavonoides, taninos, esteroides, saponinas — pequi, mangaba e guabiroba — também são importantes fontes de anti-hipertensivos”, ressalta.

No caso da medicina e da indústria de cosméticos, o uso ainda é pequeno, mas pesquisas têm explorado cada vez mais as potencialidades das especiarias. “O cerrado ainda é um bioma pouco estudado em comparação com os demais, mas, nas últimas décadas, tem atraído bastante atenção”, destaca. De acordo com Renata, estudos recentes da Embrapa têm catalogado espécies com potencial para obtenção de óleos essenciais e extratos. “Um exemplo icônico é a arnica, que tem potencial medicinal e cosmético, usada em infusão em álcool, sabonetes e aromatizante”, cita.


Culinária

Diante da generosidade e exuberância do cerrado, as possibilidades de uso da flora nativa são as mais variadas. Entre elas, estão as potencialidades gastronômicas. O exotismo das especiarias cerratenses foi o que levou o chef de cozinha Gil Guimarães, 50 anos, a reconhecer a culinária tradicional do bioma. “O cerrado tem frutos marcantes, frutos brutos, que mostram a própria sobrevivência do bioma. Ele queima e se reinventa todo ano”, ressalta. Natural de Minas Gerais, o chef explica que cresceu com o cerrado ao seu redor e, no caso da culinária, não foi diferente. Mas percebia que poucos conheciam os gostos oferecidos pelo bioma: “Por haver muitas pessoas de outras regiões na cidade, eu percebi que muitos não davam importância, por ser uma cidade mais cosmopolita”, lembra.

Ao chegar na capital, Gil diz que buscava a originalidade da Europa, até que reencontrou sua regionalidade nos pratos. “Quando eu olhei para o cerrado, comecei a me encontrar, a encontrar a comida da minha mãe, da minha avó. A encontrar a verdadeira comida brasileira”, recorda.

O momento foi importante para que ele pudesse contar suas histórias por meio das receitas. “Na gastronomia, é um processo começar a olhar para dentro, para os seus, sua terra. Às vezes demora um pouquinho, mas depois conseguimos ter um olhar amplo para o mundo ao redor”, acredita. A gastronomia moderna é isso: é usar uma boa técnica de cozinha olhando o seu quintal, o que está a sua volta”, ressalta.

A coordenadora do coletivo Cerrado no Prato, Ana Paula Jacques, pesquisadora em biodiversidade brasileira e professora de gastronomia, explica que a identidade cerratense precisa ser melhor trabalhada na culinária. “Ainda estamos em busca de ampliar o uso dessa flora na alimentação. De modo geral, essas espécies não chegam ao mercado. Não há produção e cultivo comercial. As iniciativas de comercialização ainda são muito incipientes”, afirma.

Para que a produção das espécies sejam mais valorizadas, Ana explica que é preciso um trabalho de peregrinação, em busca dos sabores cerratenses. “Temos espécies que têm amplo potencial de valorização, como a castanha baru, que até os anos 1990 era utilizada somente na alimentação do gado, uma vez que as pessoas não conseguiam abrir o fruto. Foi preciso desenvolver instrumentos de quebra adaptados e, por consequência, sua extração ficou mais fácil. hoje, a castanha já conquistou seu espaço na cozinha de vários chefs, inclusive internacionais”, comenta.

Segundo a especialista, mesmo devagar, o processo de valorização tem acontecido. “Ao olharmos para 20 anos atrás, percebemos mudanças sensíveis. Hoje, é muito mais fácil encontrar os produtos de maneira mais ampla no setor da alimentação fora do lar”, afirma. Ana ressalta que o processo é devagar pois ainda há pouco conhecimento.

Um dos fatores que impedem a valorização é a falta de reconhecimento da cultura cerratense pelos moradores da capital. “Brasília foi construída no coração do cerrado, é a única unidade da Federação cujo o território é constituído 100% pelo bioma. Mas não vemos isso de uma maneira presente nas estratégias e políticas, a cidade deu as costas para o bioma”, ressalta Ana.

Fonte: Correio Brasiliense

*Estagiária sob supervisão de José Carlos Vieira. 

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