Direito do Patrimônio Cultural: um novo ramo da ciência jurídica

Em tempos mais recentes, a preocupação com a proteção do patrimônio cultural ganhou espaço nas constituições das mais diferentes nações e normas complementares — de direito interno ou comunitário — surgiram em número expressivo com o intuito de tute­lar o uso, fruição, intercâmbio, preservação, difusão e gestão dos bens culturais.

Por Marcos Paulo de Souza Miranda

Em nosso país, a Carta Magna de 1934 estabeleceu os alicerces para a defesa do patrimônio cultural nacional ao instituir a função social da propriedade como princípio (artigo 113, inciso XVII) e ao estabelecer a competência concorrente da União e dos estados para proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte (artigo 10, III).



Com o advento dessas importantíssimas inovações constitucio­nais, começaram a surgir em nosso ordenamento jurídico diversos textos legais sobre a temática, que passou a ser estudada pela dou­trina administrativista geralmente em capítulos relativos ao poder de polícia e à intervenção do Estado na propriedade privada.

Com a promulgação da Carta Magna de 1988, alcançou-se o mais alto degrau na evolução normativa de proteção bens culturais em nosso país, uma vez que a lex maxima, em seu Título VIII ("Da Ordem Social"), Capítulo III ("Da Educação, da Cultura e do Desporto"), Seção II ("Da Cultura"), nos artigos 215 e 216, delineou o conceito, a abrangên­cia, os instrumentos e as responsabilidades pela proteção do patri­mônio cultural brasileiro.

A partir de então, com a formação de uma maior consciência cidadã que se voltou para a busca da afirmação da identidade nacio­nal e de uma melhor qualidade de vida pautada por valores de solida­riedade comunitária, a matéria ganhou destaque e advieram diversos diplomas normativos cujo conteúdo se entrelaça com os mais diver­sos ramos do Direito, tais como o Penal (crimes tipificados nos artigos 62 a 65 da Lei 9605/98); o Tributário (deduções a que têm direito os proprietários de bens tombados e os incentivadores de projetos culturais previstas na Lei 8.313/91); o Civil (função social da propriedade – artigo 1228, §1º, CC); o Processual Civil Coletivo (Lei 7.347/85, com as alterações da Lei 8.078/90); o Administrativo (artigos 72 a 75 do Decreto 6.514/2008); e o Internacional (artigo 6º do Decreto 7.107/2010), apenas para citar alguns exemplos da transversalidade da matéria.

Nesse cenário, sabendo-se que a tutela do meio ambiente (lato sensu) engloba não somente os seus aspectos naturalísticos (água, ar, fauna, flora etc.), mas também os bens integrantes do meio ambiente urbanístico, laboral e cultural, a partir da década de 1990 a defesa do patrimônio cultural no Brasil — antes mencionada pontualmente em obras de Direito Administrativo — passou a constar dos melhores manuais de Direito Ambiental, ocupando capítulos próprios, conquanto, em geral, sintéticos e pouco profundos.

Vale ressaltar que, em âmbito internacional, também foi a partir dos anos 1990 que surgiu o ramo especializado inicialmente cha­mado de Direito da Cultura [1], do qual se desdobra o Direito do Patri­mônio Cultural.

Em nosso país, a abordagem doutrinária mais sistemática sobre o tema e os embates jurídicos pela implementação das regras relati­vas à preservação do patrimônio cultural, mormente decorrentes da atuação do Ministério Público brasileiro, em um cenário com picos de crescimento industrial e econômico fomentadores de grande número de conflitos, forjaram decisões jurisprudenciais importan­tes sobre a questão e induziram o surgimento de obras doutrinárias nacionais específicas a tal respeito. No âmbito dessa evolução, houve a identificação e a sistematização dos princípios reitores da tutela do patrimônio cultural brasileiro, medida essencial para se estabelecer uma base estável de diretrizes para o estudo e a aplicação das normas sobre o assunto.

Hoje em dia, como ressaltado por José Luis Álvarez Álvarez, já passou a época em que havia que se justificar a existência de um trata­mento legislativo especial para esse conjunto de bens culturais [2]. Tanto as legislações nacionais como os organismos internacionais partem da ideia de que esse patrimônio, sua conservação e seu incremento são essenciais para a comunidade e para seus membros e exigem uma nor­mativa especial, adaptada à natureza dos bens que o integram, e o que havia iniciado em uns poucos países, mais cultos ou adiantados, se converteu já em uma preocupação universal.

Segundo André Franco Montoro [3], a dinâmica da vida econômica e social e as transformações que se operam fazem surgir novas reali­dades e situações que repercutem sobre as pessoas e suas relações. E essas situações acabam por gerar novos problemas e a necessidade de formulação de "novos direitos", daí surgindo enxertos na árvore da ciência jurídica, tais como o Ambiental, o do Consumidor, o Ciber­nético etc.

Fabrizio Lemme ensina que o Direito do Patrimônio Cultural nasce quando o povo adquire consciência de sua própria identidade [4], de suas raízes, e sente a necessidade de defender os testemunhos de sua história.

Na mesma perspectiva, Eduardo Vera-Cruz Pinto afirma que o Direito do Patrimônio Cultural é uma expressão que se identifica com um conjunto de normas jurídicas, conformadas com um sen­timento geral de respeito aos valores simbolizados nesses bens ou coisas protegidas, que procuram a sua legitimidade e eficácia na liga­ção estabelecida, por meio da fundamentação, com a comunidade [5].

Como tivemos a oportunidade de ressaltar em nossa recente obra sobre o tema [6]:

"Por tudo isso, ante os conflitos instaurados em solo nacional em razão dessa tomada de consciência cidadã e a consequente necessi­dade do estudo específico sobre um domínio antes pouco explorado, surgiu o Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro, que pode ser con­siderado como um ramo especializado do Direito Público, composto por normas e princípios que disciplinam e buscam a proteção, pre­servação, fruição, difusão e gestão dos bens culturais em nosso país".           

Ante o seu variado campo de abrangência, o Direito do Patrimô­nio Cultural necessita dialogar permanentemente com outras ciên­cias, tais como História, Arquitetura, Arqueologia, Conservação, Restauro e Antropologia, em um intercâmbio interdisciplinar coope­rativo, aberto e permanente, a fim de alcançar a mais eficiente e ade­quada tutela dos bens culturais.

Para alcançar a sua plena efetividade, esse específico ramo do Direito precisa ser conhecido por todos os agentes envolvidos com a proteção e gestão de bens culturais, mesmo que não tenham formação específica na área jurídica.

Enfim, o Direito do Patrimônio Cultural, para além de ciência, é um instrumento que se volta à tutela de uma realidade viva, que está sempre na encruzilhada entre a memória e a criação, permitindo o enraizamento dos bens culturais materiais e imateriais, da herança transmitida entre as gerações e da memória como garantia de perma­nência dos valores de nossa sociedade.


[1] MONNIER, Sophie. FOREY, Elsa. Droit de la Culture. p. 18.

[2] ALVAREZ, José Luis Álvarez. Estudios jurídicos sobre el patrimonio cultural de España. p. 233.

[3] MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito, p. 20.

[4] LEMME, Fabrizio. Compendio di Diritto dei Beni Culturali. Seconda Edizione. p. 13

[5] PINTO, Eduardo Vera-Cruz. Contributos para uma perspectiva histórica do direi­to do património cultural em Portugal. p. 237

[6] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte: 3i Editora. 2021. 

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