VIAGEM POR TEXTOS JÁ DANTES NAVEGADOS.
Se o início da viagem, a saída de Ítaca rumo a Tróia foi de esplendor e de sucessos, o regresso – imposto por Zeus, diz o herói- foi “doloroso”, porque foi atrasando – como sucedeu aos hebreus a caminho de Canaã – com transtornos, escolhos, tornando ainda distante o Lar. Mas Ítaca não seria, na diegese da Odisseia, menor do que Odisseu, nem menor que as aventuras prodigiosas que foi vivendo o herói no plano do maravilhoso.
Por Hugo Martins
Estou tomado pela preguiça intelectual. Tento garatujar uma ou outra palavra sobre a folha branca, mas a cabeça teima em não produzir nada. Parto então para o artifício do palavra puxa palavra. Já Cícero, escritor e orador romano, dizia que nem um só um dia sem se escrever alguma coisa. O mesmo dizia Drummond para sua filha Maria Julieta.
Da minha parte, vou aqui costurando pensamentos, entabulando raciocínios, quando, de súbito, me salta uma idéia. Joga-me ela um desafio: por que não escreves sobre personagens da vida real ou mesmo da literatura. Considerei a proposta e terminei por aceitar a sugestão. Resta saber se as ideias vão mesmo se coser e surgir daí alguma coisa.
Dou tratos à bola e só me vem à cachola personagens da chamada grande literatura. De repente, vejo-me na tenda de Aquiles no exato momento em que este recebe a visita de Príamo, que viera reclamar o cadáver do filho Heitor para a este dar funeral digno. A expressão do pai era de súplica indizível; quanto ao herói, corriam-lhe grossas lágrimas dos olhos e em seu semblante lia-se a misericórdia suprema, tão expressiva quanto o olhar da Virgem Maria, dirigido ao filho morto, na Pietá de Michelângelo. Sublimidade sem par na descrição de Homero.
Depois, chego à ilha de Polifemo. Ali, Ulisses e seus companheiros tentam salvar-se da ira do gigante de um só olho na testa. Observo o quadro e vejo quando Ulisses, tentando se fazer de bonzinho com o gigante, conquista-lhe a amizade. Por isso, Polifemo diz que Ulisses terá o privilégio de ser o último a ser devorado. Percebo, então, que Ulisses está a preparar uma poção para deliciar o gigante. Tal poção foi a gota final para Ulisses salvar os companheiros. O gigante caiu em sono profundo, Ulisses varou-lhe o olho com uma estaca e dali escafedeu-se com os companheiros....
Agora, estou na cidade de Santa Fé, no Rio Grande do Sul, em plena Revolução Farroupilha. De uma esquina, vejo a entrada do Capitão Rodrigo Cambará. Vem montado num belo cavalo, veste dólmã azul ,com lenço vermelho em torno do pescoço, bigode preto e ar , a um tempo, másculo e trocista. Vi-o quando se apeou e entrou numa taverna... Não mais o vi. Bem sei que ali se instalou e casou-se com Dona Bibiana Terra. Aquele Capitão, que "era das Arábias", como dizia o padre, era um misto de altivo cavalheiro com a picardia maliciosa do bon vivant..
Mais tarde, acordo numa mesa de bar num cabaré de Salvador. Ali perto, ouço sussurro de vozes e reconheço a do Cabo Martim, soltando chalaças e abrindo-se em estrondosas gargalhadas, enquanto vira um copo de cachaça e come um bom naco de moqueca de arraia. As mulheres o olham... O cabo só quer conversar e ver o tempo correr. De mãos dadas Guma e Lívia tomam o caminho do cais. Ao lado, de rosto fechado, Mestre Manuel caminha vagaroso com Maria Clara. O mestre estava chateado, pois o Paquete Voador estava se recuperando de uma avaria e, por isso, não podia ele pescar a cantar cantigas de amor no mar para acalentar o espírito de Maria Clara.
Já em Ilhéus, sento-me numa mesa do Bar Vesúvio. Logo se achega o turco Nacib. Serve-me uma cachaça e começa a falar do amor dividido de Gabriela, mulata a quem ele dera guarida e comida. Passam homens de enxadas às costas em direção ao plantio de cacau; trotando, de nariz empinado e ar gabola, o coronel Ramirez toma o rumo de sua fazenda... Dali onde eu me encontrava, dava para ouvir a cantoria faceira que Gabriela entoava na cozinha do restaurante do turco...
Do porre que tomei em Ilhéus, olhando os predicados de Gabriela, vi-me no alpendre da casa de Dona Benta, deitado no chão e arrodeado por uma boa porção de gente: um sabugo com ar de erudito; um burro de língua solta, a fazer comentários do que se passava no sítio; um menino de macacão de mescla e estilingue na mão; uma meninota de nariz arrebitado, olhando-me com curiosidade; duas senhoras de saias longas. Uma delas era alva, cabelo arrepanhado em forma de coque, óculos e ar de bons amigos. A outra lembrava as mucamas das casas grandes. Trazia na cabeça um lenço estampado a esconder-lhe a gaforinha. Ouvi quando disse:" dona Benta, convide o moço a se abancar na cozinha e comer um dos meus bolinhos que tanta gente aprecia". Foi aí que se apresentou Emília, a boneca de pano de lábios carnudos, nariz atrevido e ar de quem bem sabe o que quer. Durante os dias que ali passei, vi o quanto aquela família era feliz. Vivia na felicidade, embalada pelas histórias de Dona Benta e Tia Nastácia. Além disso, todos tinham tempo pra sonhar. Os meninos, o sabugo e a boneca viviam metidos em aventuras, coadjuvados por personagens de todos os lugares e de todos os tempos. Até Belerofonte ali esteve, sem falar de Dom Quixote e seu escudeiro Sancho Pança.
Ao deixar o sítio, ficou-me uma forte impressão; Emília era nada mais nada menos que o alter ego de Monteiro Lobato. Não tinha papas na língua, nada temia e só fazia algo ou com algo concordava se antes a questão passasse pelo crivo de seu intelecto. Quando a coisa parecia insolúvel, a boneca recorria ao faz-de-conta, isto é, procurava saída para tudo, tal como fazia seu criador, cuja rebeldia foi castigada pelo gênio mau das ditaduras.
Pronto, o texto se fez. É igual a coçar, como diz o povo, basta começar.
26.01.2025
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