REGISTROS DA CULINÁRIA BAIANA TRADICIONAL

Publicada pela editora Corrupio, o livro foi lançado originalmente em 1988, sendo um marco na documentação e preservação do conhecimento ancestral afro-brasileiro.

O livro "Comida de Santo numa Casa de Queto da Bahia", de Vivaldo da Costa Lima, é uma obra que explora a rica culinária ritualística do Candomblé, destacando o uso de ingredientes específicos, como folhas sagradas. As folhas possuem grande significado religioso e simbólico, sendo utilizadas tanto na preparação dos alimentos quanto nos rituais. 

Uso das folhas na culinária ancestral 

Um dos principais legados desta obra é a valiosa transcrição, realizada pela Yalorixá Olga do Alaketo, das receitas que fazem uso de folhas em suas preparações.

As folhas desempenham um papel fundamental na culinária e nos rituais das casas de candomblé, especialmente em uma Casa de Queto. Elas não são apenas ingredientes culinários, mas também possuem significados espirituais profundos. As folhas são utilizadas tanto para a preparação de pratos sagrados como para banhos, oferendas e purificações.

Cada folha tem sua energia específica e está associada a um orixá, servindo para conectar os praticantes com o sagrado. Além de seu uso espiritual, o livro evidencia o valor nutricional e medicinal das folhas, reforçando a sabedoria ancestral.

Muito utilizada nas casas de candomblé, a taioba (Xanthosoma sagittifolium), conhecida como Ewe Kókò, é atribuída ao orixá Odé, especialmente a Erinlé, pai de Logunedé, e também a Iyemanjá.

Na Bahia, com a taioba prepara-se o tradicional Efó, um prato delicioso feito com as folhas refogadas em camarão seco e azeite de dendê. Apesar de sua riqueza cultural e gastronômica, o Efó tem se tornado cada vez mais raro nas mesas baianas.

Manuel Querino, em seu livro Arte Culinária na Bahia, também cita o Efó, ressaltando que pode ser preparado com outras folhas, como mostarda, oió, ou mesmo folhas de arbustos conhecidos localmente como unha-de-gato, bertália, bredo-de-Santo-Antônio e capeba. Trata-se de um valioso inventário de receitas africanas preservadas em nossa terra.

Além de seu uso culinário, essas folhas e raízes possuem importância sagrada nas tradições do candomblé. A raiz da taioba, embora conhecida como inhame, não costuma ser oferecida aos orixás, sendo reservada para ebós. Essa distinção reforça o valor simbólico e ritualístico dessas plantas no contexto das religiões de matriz africana.

Olga do Alaketo e sua importância

Mãe Olga do Alaketo (1915–2005) foi uma das mais importantes iyalorixás do Brasil, líder do Terreiro Ilê Maroiá Láji, em Salvador. Ela teve um papel crucial na preservação e disseminação dos saberes das tradições do candomblé, incluindo o uso das folhas. Mãe Olga é reverenciada por seu profundo conhecimento sobre a liturgia e a aplicação das folhas em rituais, sendo também uma defensora da valorização da cultura afro-brasileira.

O legado de Mãe Olga e sua relação com as folhas vai além da prática religiosa: ela simboliza a resistência cultural e espiritual das tradições africanas no Brasil. Sua atuação ajudou a consolidar o respeito às práticas de candomblé e a combater preconceitos.

Contribuições do antropólogo Vivaldo da Costa Lima

O antropólogo Vivaldo da Costa Lima desempenhou um papel fundamental no registro dos alimentos sagrados e tradicionais das religiões de matriz africana, como o Candomblé. Seu trabalho foi pautado por um profundo respeito pelas culturas afro-brasileiras, destacando a importância das práticas culinárias como parte integrante das expressões religiosas e culturais.

Ele reconheceu o papel central dos alimentos na cosmologia e nas cerimônias religiosas, vendo neles mais do que simples sustento: uma forma de conexão espiritual e cultural. Por isso, dedicou-se a documentar detalhadamente receitas, ingredientes e rituais, sempre respeitando as tradições e o saber das comunidades e das lideranças religiosas, como a Yalorixá Olga do Alaketo. Sua abordagem cuidadosa contribuiu para a valorização e preservação desse patrimônio cultural, além de promover maior compreensão e respeito às práticas afro-brasileiras.

Entre os pratos mencionados na obra, destacam-se:

Omolocum: Um prato feito à base de feijão-fradinho cozido, azeite de dendê, cebola e camarão seco, que muitas vezes incorpora folhas sagradas como o epo-òró (folha de mamona), usadas para abençoar a comida.

Aberém: Preparado com massa de milho envolvida em folhas de bananeira, esse alimento é oferecido em rituais para orixás como Oxum e Oxalá, com a folha desempenhando papel fundamental no cozimento e na ritualização.

Efó: Um prato de folhas refogadas, geralmente como língua-de-vaca ou taioba, misturadas com camarões secos e azeite de dendê. É associado a Oxum e outros orixás, ressaltando a importância das folhas como alimento e símbolo.

Axoxô: Milho cozido e temperado com mel, às vezes servido em folhas de bananeira, em oferendas para Xangô.

Latipá: Latipá ou amori feitas com folhas inteiras de mostardeira, as quais, depois de fervidas, temperavam como o efó e deitavam a frigir no azeite de cheiro”. (A arte culinária da Bahia-Manuel Querino

Esses pratos ilustram como a culinária de santo é intrinsecamente ligada à simbologia das folhas, que representam purificação, proteção e conexão espiritual no contexto do Candomblé. O livro de Vivaldo da Costa Lima é um testemunho dessa riqueza cultural, ao registrar cuidadosamente a importância das folhas tanto na gastronomia quanto nos rituais.

A obra é amplamente elogiada, mas também tem suscitado discussões e algumas críticas ao longo do tempo. Aqui estão algumas perspectivas, tanto positivas quanto questionamentos levantados sobre o livro:

Críticas Positivas

•Riqueza Cultural e Etnográfica: A obra é considerada um marco no estudo da culinária religiosa afro-brasileira. Vivaldo da Costa Lima conseguiu registrar com detalhes não apenas as receitas, mas também o simbolismo, a ritualística e o contexto sagrado dos alimentos, oferecendo uma contribuição inestimável para a preservação dessa cultura.

•Respeito pela Tradição: Muitos reconhecem o respeito com que o autor tratou a espiritualidade e as práticas do Candomblé. Ele ouviu e valorizou as lideranças religiosas, como a Yalorixá Olga do Alaketo, garantindo que o registro fosse fiel às tradições.

•Importância Acadêmica: A obra é amplamente utilizada como referência em estudos acadêmicos sobre antropologia, gastronomia e religiões afro-brasileiras, sendo vista como um material de grande valor histórico e cultural.

•Valorização das Folhas e Sabores: Ao destacar o papel das folhas e ingredientes sagrados, o livro transcende a simples culinária e evidencia a relação entre alimento, natureza e espiritualidade, algo raramente registrado com tanta profundidade.

Críticas ou Questionamentos

•Foco em um Recorte Específico: Embora o livro seja extremamente detalhado, ele aborda apenas as práticas de uma casa de Candomblé de Queto, o que, para alguns, não representa a diversidade das tradições afro-religiosas no Brasil.

•Falta de Contextualização Mais Ampla: Alguns leitores esperavam mais informações sobre como a culinária de santo dialoga com outras práticas alimentares afro-brasileiras fora do contexto estritamente ritualístico.

Apesar das críticas, o legado de "Comida de Santo numa Casa de Queto da Bahia" permanece inquestionável. O livro é uma obra pioneira e um registro essencial para a preservação da cultura afro-brasileira. No entanto, ele também serve como ponto de partida para reflexões sobre como essas tradições podem ser estudadas e documentadas de maneira ainda mais inclusiva e representativa.

○Nesta série, apresentarei títulos fundamentais que resgatam a riqueza da culinária baiana. Receitas que são registros históricos obtidos por meio de pesquisas em acervos, bibliotecas e antigos cadernos de receitas, que oferecem uma compreensão mais profunda da nossa cultura alimentar e explicam por que ela é considerada tão diversa e única.

Agradecimento especial à Mary Santana, e do acervo Valdeloir Rego da Biblioteca Central dos Barris.

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