Fernando Paiva: “Com a flor de castanheiro, os vinhos parecem aguentar-se melhor”
Na Quinta da Palmirinha, perto de Amarante, no vale do Sousa, há galinhas e patos na vinha e em vez de sulfuroso Fernando Paiva, o produtor e um pioneiro da agricultura biodinâmica em Portugal (com certificação há 15 anos), já aplica flor de castanheiro no mosto.
O professor de História, agora reformado, é co-autor da patente registada para a solução. Quando comprou a vinha (parcelas em Felgueiras e Amarante) procurava ocupar-se para lá da aposentação, depressa percebeu que o que fazia sentido era ter uma produção mais sustentável. Já se dedica à vinha há quase 30 anos, começou por fazer sumo de uva e hoje faz vinhos de intervenção mínima, 15 mil garrafas por ano, essencialmente das variedades Loureiro e Azal.
O professor não fez sempre vinho, como é que vem parar ao vinho?
Comecei com este projecto em 2000. Foi o ano em que eu me reformei. E comecei por transformar as uvas em sumo. As vinhas já tinham sido plantadas há uns 6 ou 7 anos. Portanto, comecei a fazer sumo de uva pasteurizado e depois pedi a certificação biológica, que eu obtive em 2004. E depois a certificação biodinâmica, que foi concedida efectivamente em 2008. Entretanto, meteu-se aquele período da crise financeira e o mercado do sumo foi-se um bocado abaixo e eu comecei então a ir para o vinho. O primeiro vinho com o selo Demeter foi para o mercado em 2008.
E quando plantou estas vinhas, já era com o intuito de ter aqui uma outra actividade?
Sim era, ainda era muito nova para encostar, para não fazer nada. Tinha aqui a vinha e queria fazer as minhas experiências. As uvas estavam por preços muitíssimo baixos e ainda por cima corria o risco de perder saúde ao lidar com químicos, porque as vinhas estavam em convencional. Utilizavam-se [aqui] bastantes químicos. Arrisquei ir por outro caminho. Depois fez-se uma conversão. Os vinhos a partir de 2010 começaram a ter bastante sucesso no mercado externo e depois o mercado interno também começou a interessar-se pelos vinhos e hoje as coisas estão a correr muito bem. O vinho vende-se muito bem.
Que área de vinha tem e qual a produção anual?
São 3 hectares, que incluem uma parcela pequena em Amarante, uma parcela pequena. Em média 15 mil garrafas. Tenho Azal, Loureiro – do qual também faço um vinho de curtimenta – e Arinto. São vinhos monovarietais, excepto o Azal que normalmente é misturado com o Arinto, que vem de uma parcela pequena, em fase de desenvolvimento neste momento. Teve de ser replantado porque a vinha anterior a esta foi atacada pela flavescência dourada. O ataque já era de tal maneira grande que a solução teve de ser essa.
E não apareceu nas outras parcelas?
Aparece de vez em quando, mas nós agora já conhecemos melhor o problema e actuamos mais depressa.
Como é que se trata isso estando no regime de agricultura biodinâmica?
Na região [dos Vinhos Verdes], somos obrigados a fazer um tratamento com insecticidas contra o vector da doença, a cigarrinha.
A obrigação virá do princípio de que a vossa vinha não é só a vossa vinha, é uma vinha vizinha de outras vinhas.
Exactamente. E nesta situação a certificadora, que é a Demeter Internacional, permite que nós utilizemos o insecticida sem que isso nos custe a certificação, desde que esse insecticida esteja homologado pela certificadora. São insecticidas que estão homologados mesmo para a agricultura biológica e para a agricultura biodinâmica.
E como é que surgem as galinhas na vinha?
Inicialmente, o projecto era criar frangos biológicos, para carne. Era um projecto com perspectivas económicas. Só que na altura era muito complicado o abate, para a comercialização, e nós fomos aguentando durante algum tempo e depois acabamos por desistir da ideia de economia. E pensámos apenas no interesse para o equilíbrio ecológico. Estamos a falar talvez de 2007, 2008. E a partir daí as aves estão aqui na vinha para controlar algumas plantas e para controlar sobretudo insectos. E para fazer a fertilização do solo. Porque, desta maneira, nós conseguimos ter um solo com algum equilíbrio, sem precisamos de incorporar matéria orgânica vinda de fora, porque as aves fazem esse papel.
Em relação aos insectos…
As galinhas comem muitos insectos, comem muita proteína animal. Comem o que encontram. Por exemplo, há um bicho que nesta altura, no abrolhamento, se instala nos gomos e se alimenta deles. Rói aquilo tudo e nós só damos conta passado um tempo, quando vemos as outras videiras vizinhas cheias de vigor e aquelas parece que morreram. Aqui no Norte, o nome comum popular desse insecto é Casaca-de-ferro. É do tamanho de um escaravelho, cinzento-escuro e muito rijo, por isso é que lhe chamam de ferro. Normalmente está no solo e trepa para as plantas para se alimentar. E com as galinhas e os patos – que são mais recentes, e no futuro vamos ter também gansos – esse problema deixou de existir. E como temos coberto vegetal permanente, o insecto também se alimenta no chão e já não ataca tanto a parte fina [da videira].
E este coberto é espontâneo?
Este que temos aqui é espontâneo. Mas, quando nós temos algumas ervas que são invasoras e que vão prejudicar o desenvolvimento das videiras, quando elas colonizam e impedem que haja alguma diversidade no solo, fazemos uma sementeira, normalmente, de aveia.
E porquê aveia?
A aveia é um cereal que tem raízes muito profundas e, para além de ocupar o espaço, desenvolve galerias no subsolo, que nos vai permitir depois tornar o solo mais descompactado. A água da chuva cai e penetra ali. Tem um período de duração relativamente curto e aquelas raízes que ficam lá vão decompor-se, são matéria orgânica também para as videiras.
Que desvantagens existem em ter estes animais na vinha. As ovelhas, sei que têm de ser retiradas antes da floração.
As ovelhas costumam vir para aqui durante o período de Inverno. São emprestadas, já cá não estão já saíram. Quando a videira começa a puxar e os botões começam a inchar e a tornar-se mais doces, elas começam a comer, portanto, têm que ser retiradas. Normalmente, as ovelhas podem estar na vinha entre o período imediatamente após a vindima e o fim de Fevereiro.
E as galinhas, chegam às uvas?
As galinhas chegam. E gostam das uvas, temos que as prender quando as uvas começam a amadurecer. Aí por volta de 20 de Julho, mais ou menos.
Fale-me mais dos enrelvamentos e de outras práticas.
Semeamos também trevos e, sobretudo, aquelas plantas que nos trazem o azoto da atmosfera para o solo. Para evitarmos gastar dinheiro e aplicar produtos que são evitáveis.
Para não terem de suplementar o solo, no fundo. E na feitura dos vinhos, na vinificação propriamente dita, quais são as práticas?
Os vinhos fazem-se com o mínimo de intervenção possível. Não há um caderno de normas para o natural, não é? Nós procuramos ter uvas no ponto de maturação correcto. À volta de 20 de Setembro é quando começamos as vindimas. Fazemos colheita manual, só da parte da manhã para as uvas irem frescas para a adega e não haver necessidade de fazer arrefecimentos. A fermentação normalmente arranca logo no primeiro dia da vindima. É uma coisa fantástica, como é que nós conseguimos ter leveduras da própria vinha em quantidades…
Essas leveduras indígenas não estão identificadas, nunca fez esse estudo?
Não, é o que há na vinha. Faço imediatamente a prensagem das uvas e com cachos inteiros, com excepção das uvas que vão para curtimenta, para evitarmos mais exposição ao ar, a oxidação. Cacho inteiro, prensagem e, antes de começar a fermentação – uma parte até é logo na própria prensa –, acrescento ao mosto a flor do castanheiro, que é o nosso antioxidante.
É nessa fase que normalmente, no modo de produção convencional, é adicionado o sulfuroso?
Há quem faça assim, mas há quem utilize noutras ocasiões. Como eu utilizava o sulfuroso nesse momento da prensa e após a prensagem, utilizo a flor de castanheiro no mesmo momento.
sulfitos [adicionados] os vinhos apresentam sempre alguns sulfitos, que vêm com as uvas, do enxofre que se aplica, ou por outras razões, que não sendo especialista não sei elaborar. E esses sulfitos produzidos de forma natural também protegem o vinho. De qualquer maneira, em valores muito baixos, que podem ir num vinho até 30 miligramas de sulfuroso total, noutros andar por 8 ou 9 miligramas. Quando se usam sulfitos [adicionados], o sulfuroso pode ir até 105 miligramas, julgo, nos brancos.
Têm cá castanheiros?
Sim, olhe, temos aqui, por exemplo, estes dois. Cortámos um grande, ficaram estes dois pequenos. Não estão muito frondosas porque fizemos agora uma monda. E temos outro lá em cima. A floração depende das variedades de castanha mas normalmente começa ali em Julho e vai até Agosto. E há ali um período muito longo em que podemos apanhar, até mesmo já depois de a flor cair, se não chover muito, podemos apanhar a flor do chão. É seca e depois pode ser aplicada.
Como é que é aplicada?
Ela pode ser aplicada inteira, tal e qual é. Agora, quanto mais moída ela estiver, menor quantidade precisamos e mais eficaz ela se torna.
Como foram os primeiros ensaios?
O último Vinhão que eu fiz foi em 2016, tive de o arrancar depois precisamente por causa da flavescência dourada, e como é que eu protegi o Vinhão desse ano. Protegi-o com flor de castanheiro inteira. O primeiro ensaio foi em 2015. Estávamos em 2016, no segundo ano, ainda andávamos ali a fazer cálculos e eu simplesmente calculei com as mãos.
Tinha o vinho no lagar o mosto e pensei: ponho o sulfuroso ou não ponho sulfuroso. Olhei para o castanheiro e pensei: também a desgraça não há-de ser muito grande. Fui ao castanheiro, ao chão, apanhei uma mão-cheia de flores, meti-as lá para dentro. Não sei se a causa foi esta ou não, mas os vinhos costumam fermentar em quatro dias, no máximo cinco. E naquele ano demoraram muito mais tempo. Ao fim de duas semanas, ainda havia açúcar para desdobrar.
Já não tem Vinhão?
Não tenho infelizmente, mas gostava de ter. A parcela, em Amarante, era pequena e eu para simplificar as coisas plantei Loureiro, quando, se calhar, devia ter voltado a plantar Vinhão.
O professor foi o primeiro a pôr em prática várias destas coisas de que falámos. Em 2008, havia muita gente a estudar e a praticar a biodinâmica?
Não e continua a não a haver.
Mas hoje é assunto. Fala-se muito da biodinâmica.
Mais da parte do consumidor. O consumidor está muito mais informado do que estava. Não há comparação. Inicialmente perguntavam: o que é isso? Depois perceberam: biodinâmica é trabalhar com os astros e a lua. Agora, já conhecem os preparados biodinâmicos.
Como é que se explica ou se responde àqueles que dizem que a biodinâmica tem um quê de exotérico?
Sim, tem. E depois, qual é o problema? A mim e ao consumidor interessa-nos o produto. Porque é que a bosta de uma vaca metida num corno e enterrada durante meio ano se transforma de uma forma completamente fora do normal…
Parece um ritual, mas essa bosta é depois usada nos solos, sim.
Aqui não há rituais. Exactamente. Nós conhecemos os resultados, não conhecemos o processo. O que eu sei é que os vinhos que faço agora não têm comparação alguma com os vinhos que fazia há dez ou 20 anos. O solo é a chave de tudo. Não vamos corrigir um problema qualquer com pulverizações, é um erro. Nós precisamos é de trabalhar o solo. Se tivermos um solo vivo, rico… nós vamos por aqui a cima, tirando o espaço dos rodados do tractor, andamos quase como se estivéssemos na praia, em cima areia. O solo está vivo, tem animais em grande quantidade, que vão permitir o equilíbrio entre microorganismos. A videira não come azoto, é alimentada por micorrizas, mas o solo precisa dele. É um processo muito lento, não é de um ano para o outro que notamos diferenças.
Houve erros ao longo do caminho?
Claro, é natural. Olhe, 2020, em 2020 perdi 80% da produção. Fui atrás de um delírio do Politécnico de Bragança, que me propôs fazer um ensaio com flor de castanheiro na vinha. E disseram-me: é uma linha. Pensei: uma linha, não há problema algum. Aplicar só isso como protecção contra o míldio e o oídio. A flor de castanheiro também é eficaz contra isso, também é. Se o ano for fácil.
E 2020 não foi.
2020 foi um ano difícil. Comecei a ver o míldio a atacar, mas pensei que era só naquele bardo. Por volta do 20 de Junho, veio muita chuva e vento, os ventos com chuva vêm de acolá e isto foi assim… [faz o gesto do contágio ao resto da vinha] Foi a maior loucura que eu fiz.
E não voltou a experimentar?
Não, quer dizer, eu junto nas caldas, quando faço os tratamentos. Nós só podemos usar cobre – 3 kg por hectare, por campanha – contra o míldio. E o nosso objectivo é reduzir o míldio ao mínimo para estarmos sempre salvaguardados para uma situação mais grave. Começo com caldas muito levezinhas de cobre – 100 a 120 gramas por hectare, cobre puro – e acrescento-lhe sempre algumas plantas, o eucalipto, a cavalinha e todas as plantas ricas em sílica são muito ricas para fazer a protecção contra os fungos. Se não reforçarmos as caldas com algumas plantas, podemos ter problemas e a produção com vingar.
Inverno a terra digamos que apodrece.
Deve ser um dos detalhes da biodinâmica mais difíceis de entender por quem está de fora.
Sim, isso é a parte mais difícil. Há ali um processo de transferências que não conseguimos medir de maneira alguma. Mas o que é que nós vemos? Temos uma pilha de composto com preparados, temos outra pilha de composto sem preparados. E, ao fim de três ou quatro meses, vamos analisar uma e outra e, de facto, elas são diferentes. Outra coisa que nós podemos ver são os resultados destas práticas todas, aquilo a que nós chamamos as cristalizações sensíveis. Vemos um fruto cultivado de uma maneira e outro cultivado em biodinâmica e nota-se bem que são diferentes.
Fonte Público
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