Panará, a volta por cima dos índios gigantes
Os Panará estão em festa. Alegres e festeiros por excelência, esse povo indígena tem neste mês de outubro de 2017 um motivo mais do que especial para comemorar.
Reinstalado em terra de origem há 25 anos, grupo vê população aumentar, mas sofre pressões de invasores
Eles são protagonistas de uma saga que quase os exterminou quando da construção da BR-163 (Cuiabá-Santarém), na década de 1970, e entraram para a história dos indígenas e do indigenismo como o primeiro povo indígena no Brasil a ganhar uma ação indenizatória contra a União por danos morais e materiais. Chamados inicialmente de Kreenacarore ou índios Gigantes, só mais tarde passaram a ser reconhecidos por seu verdadeiro nome – Panará.
O retorno teve início em 1995 e quando terminou em 1997, os Panará eram 178 pessoas e inauguravam sua primeira aldeia, a Nãsepotiti. Nessas duas décadas, eles tiveram expressivo crescimento demográfico, hoje são mais de 500. Também fundaram mais quatro aldeias – Kresan, Sankuê, Sôkarasã e Kôtikô – para distribuir melhor os recursos naturais, a caça e os peixes, de modo que haja fartura e nada falte a eles.
Suakiê Panará viveu essa história desde o princípio e fala com entusiasmo da vida de seu povo. “Aqui no Iriri, hoje, tem muita comida. Aqui a gente cresceu, aumentou muito nossa população. Por isso dividimos a aldeia Nãsepotiti [hoje são cinco aldeias]”. Ela lembra do tempo em que chegaram ao Parque Indígena do Xingu. “Chegamos ao Diauarum sem filhos, não tinha criança. Quando voltamos para cá ganhamos bebês, ganhamos muitos”. Suakiê conta ainda sobre o resgate de costumes tradicionais que está em curso. “Hoje, estamos ensinando os jovens sobre as comidas da roça, a fazer o plantio e trazer de volta essa comida. As moças precisam aprender a preparar as comidas com o que vêm da roça. Para fazer o beiju tem de saber fazer fogo de pedra, precisa aprender. (...) Estamos ensinando nossos filhos e as moças para elas aprenderem e as crianças crescerem”.
ROÇAS, CULINÁRIA E ARTESANATO
Além de exímios caçadores e coletores, a partir de 2015, a Associação Iakiô Panará deu início ao projeto Puu Popoti, com foco no resgate de suas roças tradicionais e na alimentação, com a orientação dos homens mais velhos. Querem recuperar hábitos que tinham e que se perderam ao longo do tempo no contato com a sociedade envolvente.
Durante as oficinas, realizadas com apoio do ISA envolvendo as cinco aldeias, foram abordados temas como o plantio e a colheita, enfatizando os cuidados a serem tomados, e fazendo comparações com a comida dos brancos da cidade.
O depoimento de Suakiê Panará destaca a importância desse projeto, que deve terminar em 2017. Dele participam 100 famílias e a Escola Indígena Matukré, cujos professores se comprometeram a fazer com os alunos uma pesquisa continuada sobre aspectos fundamentais da roça. Não só ela, mas lideranças históricas como Kreton e o Sokriti defendem o resgate dos alimentos da roça como essencial para a sobrevivência de seu povo.
As mulheres, responsáveis pelas roças, participaram de oficinas de culinária fazendo pratos da cozinha tradicional Panará, ensinando as mais jovens.
Oficinas de artesanato também foram realizadas para produzir artefatos agrícolas, como os cestos de palha de várias fibras (palmeira inajá, madeira da palmeira siriva, folha de palmeira tucum) e de pau de cavouco. Essa produção, a cargo dos homens, foi fortemente impactada pelo consumo de produtos da cidade. Por isso, a importância dessas atividades para resgatar esses conhecimentos tradicionais. Além da transmissão para os mais jovens, as ações resultaram no fortalecimento do sistema agrícola, em uma juventude mais interessada em sua cultura e nos velhos se sentindo valorizados e festejando o envolvimento das comunidades.
MANEJO DOS RECURSOS FLORESTAIS
Eles começaram a desenvolver projetos de manejo de recursos florestais e um bom exemplo foi a coleta de sementes de mogno, iniciada em 2002, com o uso de técnicas de ascensão vertical com cordas. Nessa época, apostando nisso como alternativa econômica sustentável, os Panará colheram 700 frutos de mogno, identificaram, numeraram, mensuraram e localizaram em mapas 59 árvores da espécie. Em 2007, entraram na Rede de Sementes do Xingu, diversificaram a coleta de espécies e durante o encontro anual em 2016, ganharam o prêmio de menção honrosa pelo trabalho realizado.
A FRENTE DE ATRAÇÃO, O INÍCIO DA HISTÓRIA
A surpreendente história desse povo indígena que sobreviveu e mostrou sua incrível resiliência a obstáculos e dificuldades teve início em 1967. Foi quando o sertanista Claudio Villas Bôas e seu irmão Orlando começaram a organizar a expedição de contato, já que a construção da BR-163, rodovia que ligaria Cuiabá (MT) a Santarém (PA) cortaria suas terras ao meio. Nessa época, de ditadura militar e projetos de desenvolvimento a qualquer custo, estima-se que a população Panará fosse de cerca de 400 indivíduos, distribuídos por nove aldeias – oito na Bacia do Peixoto de Azevedo e uma no Alto Rio Iriri.
O CONTATO, AS MORTES E O EXÍLIO NO PARQUE INDÍGENA DO XINGU
Depois de alguns anos de busca na mata envolvendo longas caminhadas, travessia de rios e de muitos obstáculos, incluindo flechadas contra os aviões da FAB que faziam sobrevoos pela região, e davam apoio à expedição, finalmente, em fevereiro de 1973, a frente de atração estabeleceu o contato.
O feito, muito comemorado pelos sertanistas e indígenas de vários povos do Parque do Xingu que faziam parte do grupo, foi acompanhado de perto pelos fotógrafos Pedro Martinelli, do jornal O Globo, e Luigi Mamprin, da revista Realidade, que cobriam a expedição. Mas, nessa altura, o extermínio dos Panará já havia começado. As frentes de obras da BR-163 estavam instaladas e os índios passaram a morrer de gripes e diarreias por conta de contatos esporádicos com os brancos.
Após o contato oficial, às doenças se somaram o alcoolismo e a prostituição. Fotos dos Panará esmolando às margens da rodovia foram publicadas no mundo todo. Diante do quadro trágico de extermínio, os irmãos Villas Bôas decidiram removê-los para o Parque Indígena do Xingu (PIX), onde estariam a salvo. Nesse momento, o povo Panará estava reduzido a pouco mais de 70 pessoas. A partir daí teve início o exílio forçado. Os Panará contam que não sabiam da remoção e que viveram anos difíceis por não se adaptarem aos locais onde construíram suas aldeias. Mudaram de lugar sete vezes dentro do PIX e continuaram a acalentar o sonho de retornar às suas terras. Por outro lado, eles também recordam o tempo das doenças em que centenas morreram. O lider Akã Panará lembra sempre que os que não morreram estavam tão fracos que sequer conseguiam enterrar seus mortos.
Dois anos depois do contato, à beira do extermínio, os Panará são transferidos para o Parque Indígena do Xingu (foto: Edson Elito/EPM)
O secretário executivo do ISA, André Villas-Bôas conta que seu primeiro contato com os Panará foi em 1990, na aldeia Tuba Tuba, dos índios Yudjá, no PIX, quando já trabalhava no Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), uma das organizações que daria origem ao ISA. “Foi numa noite chuvosa que um barco chegou com Kreton Panará contando que já estavam na quinta mudança de aldeia dentro do PIX e dizendo que eles queriam voltar à região do Peixoto de Azevedo e ver o que havia restado, já que os ‘brancos tinham comido suas terras’ ”. Então, André e o antropólogo americano Steve Schwartzman, com a ajuda de seis Panará e apoio da rede britânica BBC e da Rainforest Foundation, dos EUA, organizaram uma expedição à região.
Durante o sobrevoo, os Panará reconheciam os lugares e expressavam tristeza e decepção. Terra arrasada, paisagem detonada por garimpos e pastos. Continuaram o sobrevoo na direção Norte, no Peixoto de Azevedo, e aí avistaram uma área grande de floresta, densa, intacta, sem ocupação. Nem tudo estava perdido. Começava aí a batalha dos Panará para retomar essa parte de seu território. Seguiram em frente, determinados. As terras avistadas, descobriu-se em seguida, pertenciam à União, o que seria fundamental para que a luta a ser travada dali em diante fosse exitosa.
A REOCUPAÇÃO E O RETORNO
Daí em diante começaram o processo de ocupação da área. Foram três anos de trabalho para que eles pudessem montar uma aldeia, fazer roças e todo o necessário para a mudança. O ISA, recém-fundado, e a Funai apoiaram a decisão inabalável dos Panará fornecendo combustível para que eles se deslocassem nessas viagens. A primeira leva de índios chegou na nova aldeia, ainda em construção, em 1995. Ao mesmo tempo, seguiam os procedimentos de demarcação daquela terra, o que ocorreu em janeiro de 1996, quando a Funai declarou a área de posse permanente dos indígenas, com aproximadamente 495 mil hectares. Em 2001, a terra foi homologada com 494.017 hectares e, em 2008, os limites com os municípios de Matupá e Guarantã do Norte foram retificados para 499 740,50 hectares.
Livro Panará - A volta dos índios gigantes - ensaio fotográfico de Pedro Martinelli. Saga da tribo Panará, do Parque do Xingu. Brochura, ilustrado, 166 páginas. Instituto Socioambuental, 1998.
O processo de retorno gerou muita polêmica, preocupação com a sobrevivência dos índios. Afinal, a situação era delicada e a região estava tomada por grileiros. Não poderia haver qualquer incidente. Os Panará iriam sair do PIX onde tinham assistência médica e proteção, condição rara para os indígenas no Brasil, e embarcar em uma vida totalmente nova sujeita à ação predadora de grileiros, garimpeiros e madeireiros. O livro Panará, a volta dos índios Gigante conta essa história.
A VITÓRIA NA JUSTIÇA
CONTRA A UNIÃO
Em 2000, a ação movida em 1994 pelo Núcleo de Direitos Indígenas contra a União por reposição territorial e perdas e danos à qual o ISA deu continuidade, foi vitoriosa. Em decisão inédita, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região deu ganho de causa aos Panará, condenando por unanimidade a União e a Funai a pagar na época uma indenização correspondente a quatro mil salários mínimos ou pouco mais de R$ 1 milhão pelo trágico contato. Esta foi a primeira e única decisão do Judiciário brasileiro a reconhecer a responsabilidade do Estado com relação à sua política para os índios. "A decisão é histórica, pois possibilita, por um lado, às populações que se sentirem violentadas pelo Estado, reclamarem seus direitos e, por outro lado, põe em alerta as políticas públicas desrespeitosas às populações indígenas", afirmou o advogado Carlos Frederico Marés, que representou o povo Panará durante o julgamento. E em julho de 2003, eles receberam a indenização no valor de R$ 1.261.153,12 que o governo brasileiro lhes devia. Para administrar esses recursos, criaram um Fundo de Apoio. Já tinham fundado em 2001, a Associação Iakiô para os representar e fortalecer sua cultura material, a gestão de recursos naturais e a fiscalização de suas terras frequentemente ameaçadas por invasões de madeireiros, garimpeiros e grileiros.
Á esq.: Festa do Dia, aldeia Nãsepotiti (foto: Paulo Junqueira-ISA) / Ao centro: Festa do amendoim (foto: Paulo Junqueira-ISA) / À dir.: Panará dançam durante festa no Parque Indígena do Xingu, antes de se mudarem para sua terra ancestral (foto: Agda Detogni)
AS FESTAS E A MÚSICA
O projeto Sâkiâri, da Associação Iakiô, que teve apoio do Ministério da Cultura, possibilitou aos Panará iniciar em 2004 as gravações em áudio das músicas que cantavam em suas festas. Em 2006, a cantora Marlui Miranda participou das gravações e começou uma formação para que os indígenas pudessem eles mesmos gravarem as canções. O projeto terminou em 2008 e daí resultou o CD Sâkiâri. A Escola Indígena Matukré guarda um rico acervo que é transmitido aos jovens estudantes.
Neste outubro de 2017, os Panará vão festejar, com danças e cantos que varam a noite. Para o antropólogo Steve Schwartzman esse é um caso paradigmático. “A história dos Panará é a história dos povos indígenas da Amazônia nos últimos 60 anos”, crava.
Fonte ISA
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