'A Queda do Céu': reflexões sobre o alerta xamânico de Davi Kopenawa
“Só os espíritos xapiri estavam do meu lado naquele momento. Foram eles que quiseram me nomear. Deram-me esse nome, Kopenawa, em razão da fúria que havia em mim para enfrentar os brancos. O pai de minha esposa, o grande homem de nossa casa de Watoriki, ao pé da montanha do vento, tinha me feito beber o pó que os xamãs tiram da árvore yãkoana hi. Sob efeito do seu poder, vi descer em mim os espíritos das vespas kopena. Disseram-me: “Estamos com você e iremos protegê-lo. Por isso você passará a ter esse nome: Kopenawa!”. Esse nome vem dos espíritos vespa que beberam o sangue derramado por Arowë, um grande guerreiro do primeiro tempo. […] “Haixopë! Então foi esse antepassado que pôs em nós a coragem guerreira! Esse é o verdadeiro rastro daquele que nos ensinou a bravura!”
Trecho do livro “A queda do céu – Palavras de um xamã yanomami”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert – p. 71 – 72.
A vocação xamânica de Davi Kopenawa, é fruto da riqueza de um saber cosmológico, oriundo de suas vivências nativas próximas à natureza, aos pajés e xamãs de sua tribo; juntamente com uso de substâncias consideradas "plantas de poder", desde a infância até sua iniciação na fase adulta.
Narra uma das principais tônicas de seu protagonista, Davi Kopenawa, a defende apaixonadamente o direito à existência de um povo nativo, que, ao longo dos anos, tem sido devorado por uma máquina civilizacional incomensuravelmente devastadora do ponto de vista tecnológico, uma elucidação do mundo, segundo um saber originário distinto do civilizacional e da descrição do colonizador.
Davi apresenta uma análise xamânica etnográfica, num recorte crítico da economia política da natureza sobre aqueles aos quais denomina "o povo da mercadoria".
Para Davi Kopenawa, este adjetivo está ligado à civilização ocidental, que valoriza o lucro pelo capital econômico (bens de consumo) em detrimento ao valor humano. Deturpando o sentido subjetivo das relações, subverte o lugar dos sujeitos de tal forma que, os mesmos tornam-se meios, meras "ferramentas" com a finalidade do enriquecimento material.
Ao longo do texto observa-se a articulação do conhecimento sobre os costumes de uma cultura; a declaração política de saberes tradicionais e uma visão cosmológica e espiritual do mundo, quase suprimida na sociedade atual. O que resulta dessa descrição e análise é a mensagem, em tom profético, de que: "quando a Amazônia sucumbir à devastação desenfreada e o último xamã morrer, o céu cairá sobre todos e será o fim do mundo" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 489).
Explicando o mito em outros termos:
A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar de calor.
A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem da montanha para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe.
Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger.
Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram.
Não conseguirão mais conter os malefícios, que transformarão a floresta num caos.
Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo.
Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar.
Kopenawa é representante e indica que a sustentabilidade da vida na terra está diretamente conectada com a preservação da floresta e está intrinsecamente ligada à vida de seus habitantes originários. Uma vez que, "enquanto os xamãs ainda estiverem vivos, eles poderão evitar a queda do céu, mesmo que ele fique muito doente" (ALBERT, KOPENAWA, 2010, p. 489).
Segundo essa compreensão, os xamãs "afastam as coisas perigosas" (ALBERT, KOPENAWA, 2010) a fim de defender os habitantes da floresta, mas não só, "trabalham em defesa dos brancos que vivem sob o mesmo céu" (p. 492), de modo que, por essa visão, mesmo que não percebamos, esta conexão xamã-floresta-sustentabilidade, intervém a todos e, mesmo nos centros urbanos, permanece indelével.
Como obra literária, "A Queda do Céu" é uma narrativa elaborada a quatro mãos e está dentre as mais significativas contribuições à pesquisa dos povos amazônicos.
É o encontro "entrebiográfico" e o resultado do trabalho, amizade e observação que durou por volta de 30 anos entre Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010), combinando a história de um projeto político que fez convergir os caminhos de um pensador indígena com os ideais de um antropólogo.
Ambos com uma longa e dolorosa bagagem no empenho conjunto em defender os Yanomami das mais diversas violências a que vêm sendo submetidos desde os primeiros contatos com os ditos civilizados - napë (forasteiro, inimigo) (ALBERT, KOPENAWA, 2010).
Os povos Yanomami formam uma sociedade de caçadores-agricultores da floresta tropical do Norte da Amazônia. Constituindo um contíguo cultural e linguístico complexo de, minimamente, quatro subsistemas adjacentes que falam línguas da própria família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam).
A extensão territorial que ocupam, cobre, aproximadamente, 192.000 km2, situados em ambos os lados da fronteira Brasil-Venezuela, na região do interflúvio Orinoco - Amazonas (afluentes da margem direita do rio Branco e esquerda do rio Negro). Em 2010, a população total dos Yanomami estava avaliada em cerca de 26.000 membros (ALBERT, KOPENAWA, 2010).
O pensamento dos xamãs se estende por toda parte, debaixo da terra e das águas, para além do céu e nas regiões mais distantes da floresta e além dela. Eles conhecem as inumeráveis palavras desses lugares e as de todos os seres do primeiro tempo [...] A mente dos grandes homens brancos, ao contrário, contém apenas traçado das palavras emaranhadas para as quais olham sem parar em suas peles de papel (ALBERTO, KOPENAWA, 2010, p. 468).
Vê-se assim que não é muito difícil perceber o efeito da perda desse vínculo e do sentido existencial nas grandes cidades nos dias atuais, desde quando a máxima progredir foi declarada como pedra angular na atualidade: a colonização, a erradicação de costumes tradicionais, ligados ao cultivo da terra como um ser vivo, o escárnio a crenças e obras de nações indígenas inteiras, com base essencialmente na mais arrogante falta de discernimento.
Ailton Krenak, pensador indígena crítico da modernidade, diz que esse estado atual "jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade" (KRENAK, 2020, p. 9). Valores e razões de vida de comunidades tradicionais foram e continuam sendo indefinidamente negados. Por fim, "a promessa da riqueza e da fraternidade, torna-se concretamente a indigência, o desenraizamento, o abandono, e isto não a título provisório, mas de maneira cada vez mais definitiva" (LATOUCHE, 1996, p. 78).
'A Queda do Céu': reflexões junguianas sobre o alerta xamânico de Davi Kopenawa
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