Bacalhau: de comida de pobre ao luxo na Semana Santa

No caso do bacalhau, um produto alimentar, fortemente integrado à história e ao patrimônio culinário do brasileiro, porque este peixe, seco e salgado, de consumo tradicional nas celebrações, faz um dos mais evidentes sentimentos de aproximação entre Portugal e o Brasil, e integra as memórias alimentares das casas, do cotidiano e das festas.

Marcos Nogueira - FSP - 7.abr.2023

"Para quem é, bacalhau basta." Este é um ditado que meu pai aprendeu na infância e gostava de repetir para a família no afã de causar espanto –como se a mesma piada contada mil vezes ainda tivesse alguma graça.

O provérbio diz respeito a uma pessoa tão reles que, para ela, qualquer coisa está de bom tamanho. Até mesmo bacalhau.

Uma completa baboseira quando se sabe que o bacalhau é um alimento caro, reservado para ocasiões especiais como a Semana Santa. Era essa a dissonância que meu velho pretendia jogar no ar para os filhos.

Tínhamos uma situação bem diferente quando o pai crescia, nos anos 1930.

A refrigeração de alimentos ainda era coisa para poucos. A carne que se encontrava no mercado era charque, porco salgado, linguiça defumada, camarão seco. Não havia como se entregar peixe oceânico fresco em Lençóis Paulista, a 370 km de Santos (pelas rodovias que só seriam construídas décadas depois).

O drama da conservação da comida se repetia nas cidades maiores. Gelo era precioso, um luxo. Carne e peixe frescos, só para quem podia pagar muito. Para os pobres, bacalhau.

É fácil entender por que bacalhau era comida de gente pobre. Se você o observar com um olhar desapaixonado, verá um naco de peixe seco e fedorento, nada apetitoso.

Requer muito trabalho e algum talento converter o bacalhau numa refeição digna. Os portugueses nos transmitiram esse savoir-faire. Um bacalhau bem-feito é algo absurdamente bom.

Tão bom que a demanda pelo peixe cresceu até ameaçar a existência do Gadus morhua, nome científico do dito-cujo. Escasso, tornou-se caro; caro, tornou-se cobiçado: é nesse ponto que começa a girar o moto-perpétuo da indústria do luxo.

Meu pai assistiu ao vivo à ascensão social do bacalhau. Para ele, não tinha sentido o valor que o peixe seco e fedido adquiriu ao longo do século 20.

Aos olhos de um ateu (eu), o aburguesamento do bacalhau expõe uma curiosa incoerência no hábito de comê-lo na Semana Santa.

As restrições alimentares impostas na Quaresma têm por finalidade a penitência. O ideal seria praticar períodos de jejum, mas logo o clero percebeu que era baixíssima a adesão a dieta tão radical.

Assim, foram sendo liberadas algumas categorias de alimentos: pão, vegetais e, por fim, peixe –sempre fortíssimo na simbologia cristã.

Permaneceu o veto às outras carnes, pois remetem à abundância e à celebração. O festim do cordeiro e do porco ficava reservado para a Páscoa, quando a vida retomava o compasso normal.

O bacalhau se encaixou perfeitamente no ritual de expiação dos tempos passados. Um humilde pedaço de peixe seco para sustentar o corpo enquanto o espírito sofria.

Agora sofre o bolso de quem, para manter uma tradição desviada do sentido original, faz questão de bacalhau na Semana Santa. O bacalhau virou a abundância, a ostentação e a alegria que os padres se esforçaram para proibir enquanto o Cristo está morto na cruz.

Eu, que espio pelo lado de fora, acho até divertido.

Folha de São Paulo 

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