Por que o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira é patrimônio cultural brasileiro?

 

Por RAQUEL PASINATO

Quilombo de Ivaporunduva, em Eldorado, Vale do Ribeira (SP) à beira do Rio Ribeira de Iguape.

Os quilombolas habitam e manejam a floresta atlântica no Vale do Ribeira há mais de 300 anos. Não por acaso o Vale do Ribeira é o maior  remanescente de Mata Atlântica contínuo: dos 7% que restaram do bioma de Mata Atlântica em território nacional, 21% estão localizados no Vale do Ribeira. É a área mais conservada de São Paulo, contrastando com o  restante do Estado que está desmatado e não abriga comunidades quilombolas.

Ou seja, as maiores áreas de Mata Atlântica no Estado de São Paulo estão nos municípios do Vale (Veja tabela 1), onde vivem populações tradicionais e existem áreas protegidas, como os Territórios quilombolas. Seria esse cenário apenas uma casualidade, uma coincidência? Ou teriam essas comunidades desempenhado um papel fundamental na conservação da floresta?

A partir da ocupação histórica da região nos últimos séculos, as condições da geografia de relevo acidentado com áreas desfavoráveis à agricultura de larga escala e o baixo desenvolvimento de infraestrutura como estradas, por exemplo, pode-se entender as circunstâncias que fizeram com que as comunidades sobrevivessem até hoje da agricultura tradicional. As técnicas de plantio de baixo impacto, aliadas a baixa densidade populacional da região e a permanência dos quilombolas no território, impedindo a entrada de exploradores, são fatores que se somam e contribuem para que a vegetação esteja preservada no Vale do Ribeira.

Ao longo de sua existência, para sobreviver no Vale, os quilombolas praticaram uma agricultura itinerante, herdada dos povos indígenas que habitaram a mesma região, chamada por  eles de  roça de coivara e que tem outros nomes em outras regiões tropicais.  É a forma de agricultura milenar de povos e comunidades tradicionais.  Até o passado recente, foi esta agricultura que garantiu alimento para as famílias quilombolas e todas as outras da região. Hoje essa mesma agricultura, que concilia produção com conservação, alimenta os quilombolas e outras famílias que recebem a comida produzida por meio dos programas institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional Alimentação Escolar  (Pnae).

A agricultura quilombola do Vale do Ribeira vem sendo amplamente estudada pela academia e os conhecimentos dos quilombolas sobre suas práticas e seu  manejo vêm sendo relatados e documentados. Esse binômio, conhecimento tradicional e conhecimento científico, foram os alicerces do dossiê que embasou o pedido de registro como patrimônio cultural ao Iphan.

A partir de 2009,  cinco anos de pesquisas  inventariaram 180 bens da cultura imaterial das comunidades da região. Na conclusão do Inventário de Referências Culturais Quilombola, em 2013, foi identificada a centralidade da agricultura na vida dos quilombolas e recomendado que a diversidade agrícola encontrada, a quantidade de bens culturais associados às roças e a importância dessa prática tão ameaçada fosse protegida de alguma forma. Diante disso, em 2014 os quilombolas deram início ao pedido de registro ao Iphan.

O Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira é um conjunto de saberes e técnicas aplicadas no cultivo de uma variedade de plantas utilizadas na alimentação, medicina e cultura material. Abrange também os espaços onde se desenvolvem as atividades, os arranjos locais de organização do trabalho, os modos de processar os alimentos, os artefatos confeccionados para este fim e os contextos sociais de consumo. A existência de cada um dos componentes do sistema agrícola promove − e ao mesmo tempo resulta − um modo de transmissão intergeracional dos conhecimentos baseado na oralidade, no aprendizado presencial e prático.

Esses conhecimentos se expressam também por meio da linguagem, pela existência de um “idioma” criado para designar processos, objetos, classificar e caracterizar elementos ligados ao fazer agrícola. As trocas comerciais envolvendo produtos agrícolas configuram um aspecto do Sistema Agrícola Tradicional, também conhecido como sistema agrícola itinerante (SAI), é baseado no rodízio de áreas de plantio: o quilombola escolhe uma área, corta, coloca o fogo apenas nesse trecho. Depois, observando os ciclos da lua, ele planta. O solo se mantém fértil por alguns anos − e as cinzas que sobram do fogo, assim como os troncos que não foram queimados, são essenciais para isso. Dali ele retira o alimento que garante a sua sobrevivência: arroz, feijão, milho, cará, mandioca, pimenta, laranja, entre outros cultivares.

O excedente do cultivo é comercializado e gera renda para atender as necessidades básicas das famílias. A partir de 10 a 15 anos depois, a roça vira novamente mata fechada.

“Diante dos dados, observa-se que não são as roças quilombolas as responsáveis pelo desmatamento na Mata Atlântica. Têm-se, no Vale, outras ameaças que merecem artigos e denúncias, caso da mineração, das Pequenas Centrais Hidrelétricas e a pulverização aérea de agrotóxicos nos bananais às margens do Rio Ribeira de Iguape.”

Segundo a bióloga Cristina Adams, pesquisadora do grupo de estudos em Ecologia Humana de Florestas Neotropicais, da Universidade de São Paulo, esse sistema foi desenvolvido simultaneamente em todas as florestas tropicais do mundo. Segundo Adams, é o sistema mais adaptado à floresta tropical.

Entre os documentos que embasam o dossiê entregue ao Iphan está um conjunto de pesquisas científicas realizadas pelo grupo de estudos em Ecologia Humana de Florestas Neotropicais, da Universidade de São Paulo, pesquisadores da Unicamp e do Instituto de Botânica do Estado de São Paulo em cooperação com instituições internacionais de ensino. Os estudos falam sobre vegetação, fauna, solos, saúde nutricional, transformações  na paisagem, agrobiodiversidade e produtividade agrícola. Todos realizados no Vale do Ribeira, em territórios quilombolas (veja as referências no final do texto)

A pesquisa de Gomes et al (2013), por exemplo, mostra que a diversidade de espécies de plantas aumenta ao longo do tempo de pousio da roça, processo esse conhecido como sucessão florestal. Se comparadas com áreas naturais perturbadas de tamanho e tempo de descanso semelhantes às roças, percebe-se que as áreas de pousio possuem número igual ou maior em espécies de plantas. Outra pesquisa também mostra a manutenção da biodiversidade nas áreas de roça, inclusive a megafauna que frequenta as áreas de roça abandonada em busca de alimento e outros recursos (ADAMS et al. 2013). Em relação ao impacto do uso do fogo na cobertura do solo, Ribeiro Filho (2015) mostra que a queima não atinge 10 centímetros da cobertura de biomassa, é superficial e atinge apenas os galhos finos e folhas mais secas, o restante se decompõe em nutrientes para o solo.

Os estudos de  Lúcia Munari (2009), desse mesmo grupo, mostram que a cobertura vegetal de algumas das comunidades não mudou desde 1965. Aproximadamente 13% de toda a área das comunidades é utilizada para as roças, habitação e demais atividades dessas populações. O resto é cobertura vegetal. Em alguns quilombos, a mata cobre  97% do território, como Pedro Cubas e Bombas. A roça de coivara foi e é essencial para os quilombolas e pequenos agricultores, bem como para a conservação do maior remanescente florestal da Mata Atlântica no Brasil, o Vale do Ribeira.

Diante dos dados, observa-se que não são as roças quilombolas as responsáveis pelo desmatamento na Mata Atlântica. Têm-se, no Vale, outras ameaças que merecem artigos e denúncias, caso da mineração, das Pequenas Centrais Hidrelétricas e a pulverização aérea de agrotóxicos nos bananais às margens do Rio Ribeira de Iguape.

Leia mais:

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