DE BOLINHO DE JESUS A ACARAJÉ VEGANO, O DESVIRTUAMENTO DO ACARAJÉ NO BRASIL
Racismo, intolerância e apropriação como sinônimos diante das comidas votivas das religiões brasileiras de matrizes africanas
Por Cauane Maia
Para Laroche (2004), as palavras acarajé e akra derivam do iorubá e podem ser entendidas como “bolinho que se compra cantando”. Já para Yeda Pessoa de Castro (2001), existem duas definições possíveis para o acarajé, sendo a primeira de origem bantu, que varia entre substantivo e verbo, significando “fogo, carvão, incendiar”. E a segunda, considera acará um substantivo ligado às religiões afro-brasileiras, que pode ser entendido como “mecha de algodão embebido em azeite de dendê que é incendiado no rito de confirmação dos devotos de Iansã”.
Vivaldo da Costa Lima (2010), defende que a palavra acarajé seja uma abreviação do pregão entoado pelas antigas negras de ganho: “Ô acara jé ecó olailai ó”. O pesquisador conclui que se refere a uma palavra de origem iorubá-nagô derivada do termo àkàrà (LIMA, 2010).
Embora a definição do termo acarajé não seja um consenso entre pesquisadoras/es, o reconhecimento da sua origem africana e disseminação no Brasil através das mulheres negras de terreiro certamente é.
A “obrigação do acarajé” era realizada por mulheres negras, que vendiam o acarajé pelas ruas em gamelas de madeira redonda, para custear os gastos das iniciações religiosas nos terreiros de candomblé: “Escolhidas por Oiá-Iansã, essas mulheres recebiam autorização para preparar e comercializar publicamente o alimento votivo da deusa poderosa, orixá dos ventos e tempestades” (LODY, 1987).
Para Santos (2013) e para o IPHAN e MinC (2007), as baianas de acarajé são herdeiras do legado deixado pelas mulheres pretas escravizadas no Brasil que atuavam como ganhadeiras, ou melhor, negras de ganho, e por sua conexão e participação no culto à orixá na diáspora.
O crescimento das igrejas neopentecostais e os ataques frontais às religiões de matrizes africanas3, cuja estratégia sistemática se assenta na demonização desses espaços e seus adeptos, criou um ambiente hostil aos candomblecistas. Com isso, surgiram os “bolinho do senhor” ou “bolinho de jesus”, que nada mais são que uma tentativa de romper com tradição que conecta as baianas de acarajé (e o próprio acarajé) aos terreiros, ou seja, o apagamento da essência desse alimento: ser comida votiva de orixá.
Com o risco iminente de descaracterizar o ofício, mais que secular, das baianas de acarajé, através dos esvaziamento dos sentidos da atividade e da modificação dos significados simbólicos que envolvem o preparo do acarajé, promovidos pelas igrejas, impõe o desafio da salvaguarda:
O registro do Ofício das Baianas de Acarajé como Patrimônio Imaterial Brasileiro, no Livro de Saberes do Iphan, aponta para a relevância de tradições afro-brasileiras que integram a cultura brasileira, em especial esse ofício, como importante símbolo de identidade étnica, regional e religiosa. Portanto, trata-se também de um instrumento de reconhecimento oficial da riqueza e do enorme valor do legado de ancestrais africanos no processo histórico de formação de nossa sociedade. (IPHAN, 2007, p. 61)
Na certidão de patrimônio imaterial emitida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, instituído pelo Decreto No 3.551, em 04 de agosto de 2000, há o reconhecimento do ofício das baianas de acarajé como bem cultural. O documento reconhece, ainda, a ligação dos alimentos que compõem os tabuleiros das baianas e as indumentárias utilizadas por elas com o culto ao orixá.
1 – Oyá, Oiá, Yansã.
2 – Ajeum / Jé / Unjé: do verbo “comer” em iorubá.
3 – A morte da Mãe Gilda é um dos casos mais emblemáticos dos ataques das igrejas aos terreiros de candomblé. A data de seu falecimento, 21 de janeiro, deu origem ao Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa desde 2007.
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