Glicéria Tupinambá: Cuidar da cultura envolve cuidar do território


Glicéria Tupinambá 

Por Leonardo Nascimento 

Fotos Fernanda Liberti 

“Foi muito importante trazer vida pro manto e mostrar que ele não era aquela coisa obsoleta, guardada num canto pra ser observada. 

É emocionante ver a peça viva e em movimento, sendo usado por um membro da comunidade. 

O manto é um presente pra trazer cura pra terra. E ele voltou a existir porque o território está sendo protegido. Agora a gente pode buscar a mágica da coisa, aquilo que encanta, que emociona, que deixa a sensibilidade à flor da pele.”

Nos séculos XVI e XVII, mantos confeccionados pelos Tupinambá foram levados por viajantes europeus e ofertados a monarcas e famílias nobres. Pela “cosmotécnica”, Glicéria Tupinambá reviveu a confecção do manto, símbolo da memória e resistência ancestral do seu povo. Ela é uma importante liderança da aldeia Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, sul da Bahia, além de participante ativa da organização política, da educação, das práticas religiosas e da reivindicação pelos direitos das mulheres.

Numa entrevista com o jornalista e antropólogo Leonardo Nascimento, Glicéria Tupinambá explica os motivos que levaram à retomada do manto e fala da vida na aldeia, da atuação como professora e sobre o envolvimento político e espiritual com a luta.

Glicéria Tupinambá é uma importante liderança da aldeia Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, sul da Bahia. Célia, como é conhecida por amigos e familiares, participa ativamente da vida comunitária, envolvendo-se em questões relacionadas à organização política, à educação, às práticas religiosas e aos direitos das mulheres. Recentemente, Glicéria retomou a confecção do manto tupinambá, símbolo da memória e resistência ancestral do seu povo.

Na entrevista a seguir, realizada em fevereiro de 2023 na Serra do Padeiro,[nota1] ela explica os motivos que levaram à retomada do manto. 

Além disso, fala da vida na aldeia, da atuação como professora e do envolvimento político e espiritual com a luta indígena, argumentando que a preservação da cultura tupinambá é indissociável da proteção do território.

Você poderia começar me contando sobre a relação da sua família com a Serra do Padeiro?

Eu nasci e me criei aqui. Nunca fui de outro lugar. Painho foi criado aqui no pé da Serra também, caçando, pescando, trabalhando, vivendo sempre daqui. Ele nasceu do casamento do meu avô com uma mulher negra.

Ela teve o filho e foi embora, deixando meu pai pro meu avô criar. A história de mainha passa por uma outra vertente.

Ela nasceu em Nova Canaã e a maioria da linhagem dela está em Itaju do Colônia [municípios da Bahia]. O meu bisavô paterno veio de um aldeamento. Minha bisavó nasceu aqui na Serra mesmo. Até hoje tem um pé de jenipapo plantado por ela. Jenipapo aqui na região é maravilhoso! Ele tem uma vida longínqua, não acaba fácil. O território, pra gente, é cheio dessas referências e histórias. Na época dos meus bisavós já tinha o enfrentamento por causa da terra. 

O pessoal começou a se organizar pra ficar mais forte e botar os invasores pra correr. A gente sempre fez resistência! Meu avô João de Nô nasceu do primeiro casamento do meu bisavô. Eu pertenço à primeira família, a família velha. Meu avô era pajé. A família velha tinha essa questão espiritual muito forte. Eu nasci e cresci na aldeia. Os velhos daqui me ensinaram a fazer de tudo. 

E o que eu mais gostava da minha personalidade era de ser livre, de ir pra mata caçar (mesmo não matando nada, eu adorava!), de comer jaca, de disputar banana com o passarinho, de escolher o melhor mamão. Não tinha pé de mamão que eu não subisse. Pé de ingá? Oxe! Saía catando, subia em todas as árvores. 

O pessoal: “Não faça isso que isso é coisa de menino. Você é algum moleque macho?”. E eu não estava nem aí. Eu tinha capacidade, então eu podia fazer aquilo. Eu ia pro rio tomar banho e pescar. Foi uma vida que eu tive e quero manter. Eu quero ela pro agora, quero pros meus filhos e vou querer pros meus netos. Eu quero deixar pras futuras gerações. Eu nunca almejei sair daqui. Tem alguma coisa estranha nos outros lugares que eu frequentei. É diferente, a terra é fria. São lugares de muitos fantasmas.

Em 2004, os Tupinambá começaram um processo de retomada de suas áreas tradicionais. No mesmo ano, o Estado brasileiro deu início à demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença. No entanto, quase 20 anos depois, o processo ainda não foi concluído.

Em 2010, você foi presa, com seu bebê no colo, após denunciar ações violentas da Polícia Federal contra o seu povo. Como começou o seu envolvimento com a luta pelo território tupinambá?

Eu só vim saber quem eu era quando estava na cadeia com meu filho nos braços. A gente ficou mais de dois meses na prisão. Antigamente, eu não tinha perspectiva de nada na minha vida. Mainha que me forçava a estudar. Pra mim, caçar mamão, subir no pé de jaca, ir no rio pescar, pra mim isso era suficiente pra viver.

Eu achava que podia ter essa opção, que eu podia escolher. Só que quando veio a luta, eu descobri que não era assim. Eu descobri que precisava fazer o enfrentamento pra esse sonho se tornar realidade. Eu tinha que lutar pela educação indígena. Se as mulheres tivessem problema no parto, elas morriam aqui mesmo. Então, eu tinha que lutar pela saúde. Em 2004 veio o momento de fazer o levante, de buscar o reconhecimento e a demarcação do território. A gente sem saber de nada, tentando entender aquilo tudo. 

A única coisa que a gente sabia é que os Encantados estavam do nosso lado. Os Encantados já tinham avisado que a gente precisava se preparar. Quando chega o período de organizar a luta, eles avisam que não poderia derramar nem uma gota de sangue.

A gente ouviu os Encantados e foi tirar tudo que estava agredindo a terra. 

A gente botou pra fora os madeireiros, caçadores e pescadores que jogavam veneno no rio. A gente de facão contra as armas de fogo deles.

Quem é que tinha juízo nesse dia? Ninguém! Cada passo que a gente deu foi didático, observando e ouvindo os Encantados, que disseram que a retomada era uma oração. Tanto que nunca houve derramamento de sangue, nem de um lado e nem do outro. Nunca ninguém morreu. O processo mais demorado foi o de cura da própria terra, que estava muito ferida. 

A gente conseguiu fazer a luta pela demarcação começar a andar. 

Eu acompanhei cada passo. As viagens a Brasília, tudo isso. Mas eu ainda não me colocava como mulher. Quando eu vou refletir na prisão, eu começo a perceber tudo isso. Eu não tinha cometido nenhum crime. Eu poderia estar em casa, cumprindo o resguardo. 

Mas eu estava ali, presa com uma criança no colo. Nessa situação você faz uma análise de conjuntura sobre a sua própria vida. Sua vida inteira é analisada. Eu me coloquei no lugar das mulheres indígenas que morreram ao longo da história, que tiveram seu ventre violado, que foram retiradas das aldeias e levadas pra lugares que elas não escolheram. Ali eu fui refletir sobre os meus passos na luta. Quando a gente é jovem, a gente vai pelo impulso; a gente faz sem pensar nas consequências. 

Mas, naquele momento, eu tinha que pensar na criança que eu tive a capacidade de trazer ao mundo. E qual mundo eu queria pra ela? Eu já estava envolvida na luta pelo território e no movimento indígena, mas foi ali que eu entendi que se antes eu lutava, agora eu precisava lutar o dobro.

Você trabalhou por muitos anos como professora. Quais são os maiores desafios na construção de uma educação escolar indígena?

Eu sempre trabalhei com educação. No início eu não sabia lidar, mas com o tempo eu aprendi. Eu fui aluna, estive em sala de aula como professora e depois fui aluna mais uma vez no ensino superior. É tudo muito redundante: o discurso, a aula, o conteúdo, a metodologia. Antes tinha essa coisa de que o jovem era o futuro. Depois mudaram dizendo que o jovem é o agora. Mas é um agora sem reflexão do passado. É um agora sem nada. É complicado falar de uma história que a História não conta, que os livros não contam. 

Como professora, eu aprendi a sonhar com uma escola pra comunidade. Uma escola diferenciada pra formar guerreiros pra luta e pro enfrentamento. Uma escola pra conhecer e questionar o mundo. É muito difícil construir uma educação escolar indígena, porque a educação que o Estado demanda de nós aniquila outras formas de conhecimento. A educação do Estado não respeita a diversidade, é a mesma coisa pra todo mundo. Eu acho que pro Brasil andar pra frente, pras pessoas andarem pra frente e olharem umas pras outras sem preconceito, vai ser preciso cada um conhecer a própria história.

Nos séculos XVI e XVII, mantos confeccionados pelos Tupinambá foram levados por viajantes europeus e ofertados a monarcas e famílias nobres. Você sempre soube da existência desses mantos? Existem histórias do seu povo que falam sobre eles?

Nós temos o manto vivo na memória dos nossos cantos. Num deles, cantamos que o índio tupinambá está coberto de penas. Então, só pode ser com o manto. Em 2000, quando o manto de pena de guará que está na Dinamarca vem pra Mostra do Redescobrimento, em São Paulo, ele nos faz um chamado. Dona Nivalda, mãe da cacica Valdelice, viu o manto na exposição e resolveu pedir a repatriação. Na mesma época, estava acontecendo uma mobilização pelo reconhecimento do território de Olivença. Os estrangeiros ficaram preocupados e levaram o manto embora. Mas isso teve uma repercussão muito grande, deu visibilidade ao povo e desencadeou o processo de demarcação do território.

Recentemente, seu nome se tornou conhecido no campo das artes visuais por causa da confecção do manto. Devido à repercussão, você foi uma das artistas indicadas ao Prêmio PIPA 2022. Por que decidiu retomar a produção do manto?

Quando a professora Patrícia Navarro veio dar aulas de história e antropologia na aldeia, ela trouxe umas fotografias do manto e projetou na parede. Eu ainda não tinha visto uma imagem do manto, eu apenas imaginava. Em 2006, resolvi fazer o manto pra presentear os Encantados. Como não tinha a quantidade suficiente de penas, a gente fez o manto na forma de cocar e o Encantado recebeu o presente. Um tempo depois, fomos convidados pelo João Pacheco, do Museu Nacional, pra participar da exposição Os primeiros brasileiros. O Encantado autorizou levar o manto, mas pediu que outros três fossem feitos. Em 2018, eu fui pra França e vi pessoalmente o manto na reserva do Museu do Quai Branly. O manto estava me esperando e falou comigo. Eu fiquei preocupada pensando: “Meu Deus do céu, eu estou doida!”. Porque foi ensinado na escola que objeto é objeto. Mas esse é um pensamento pobre. Depois eu fui entender que os objetos guardam uma memória. Quando eu sou convidada pra dar uma aula na Universidade Federal do Sul da Bahia, eu descubro pelo professor Augustin de Tugny que existem onze mantos guardados na Europa. Eles foram roubados de nós. Mas, quando me perguntam se queremos eles de volta, eu digo que não. O castigo deles é cuidar dos mantos e não deixar eles desaparecerem. O que eu quero é poder encontrar cada um e acessar essas memórias. Pra fazer o manto, eu desenvolvi uma técnica que eu chamo de cosmotécnica, um modo de ensinar que vem do Cosmo. Eu aprendo muito através dos sonhos. E eu gosto de ouvir o que o território fala e apresenta pra mim. As minhas mãos possibilitaram o resgate do manto, mas toda a comunidade participa do processo. As crianças vão coletando e trazendo as penas pra mim. Um tempo atrás não tinha quase nada aqui, porque o pessoal matava e acabava com tudo. Todo mundo acha que pra construir o manto é preciso matar os animais. O povo fica olhando e fala: “Quantos animais foram necessários pra realizar a cultura!”. A criatura em algum momento parou pra olhar os animais? Parou pra pensar por que andando na rua ela encontra pena? Se ela observar o ciclo da coisa, da renovação, do envelhecimento... O pássaro troca de pena. É um processo natural. É saúde pro bicho. Foi muito importante trazer vida pro manto e mostrar que ele não era aquela coisa obsoleta, guardada num canto pra ser observada. É emocionante ver a peça viva e em movimento, sendo usado por um membro da comunidade. O manto é um presente pra trazer cura pra terra. E ele voltou a existir porque o território está sendo protegido. Agora a gente pode buscar a mágica da coisa, aquilo que encanta, que emociona, que deixa a sensibilidade à flor da pele.


[nota1] O jornalista viajou para a Serra do Padeiro com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.


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