'Fogo de 51'? Conheça trauma do povo Pataxó no extremo sul

Movimentos recentes buscam resgatar memórias enterradas da etnia Pataxó e evidenciam as contradições da narrativa ligada à perspectiva do colonizador

por Iamany Santos

Quem ouve falar sobre a Costa do Descobrimento pensa em paisagens paradisíacas, barracas de praia, passeios turísticos e, principalmente, a chegada dos portugueses ao litoral brasileiro. Até os dias atuais, a narrativa ligada à região do extremo sul da Bahia não leva em consideração a presença e participação do povo Pataxó, etnia indígena presente em cidades que compõem a Costa.

Ao chegar na cidade de Porto Seguro, o visitante é automaticamente recebido com um monumento dedicado à chegada dos colonizadores ao nosso estado. O povo pataxó, que possui cerca de 45 aldeias na região, se espalhou entre os municípios de Prado, Ilhéus e Arraial d'Ajuda, e atualmente tem a perspectiva, majoritariamente, tratada como um"souvenir" histórico.

"Na nossa região existem cabanas de praia com o nome indígena, locais com nomes indígenas, mas não como forma de homenagem e sim como um souvenir. Como uma forma de ganhar [entendido como] atrativo turístico, sem deixar com que a gente pertença a este lugar", analisa Karkaju Pataxó, uma das lideranças indígenas na aldeia Pataxó de Coroa Vermelha e membro da Coordenação de Pesquisa Atxôhã, instituição que pesquisa a língua pataxó.

Este é um dos aspectos que revelam o quanto a perspectiva de uma colonização pacífica e harmônica se sobrepõe à realidade de violência e resistência que acompanha os povos indígenas do estado.

"A própria construção do Imaginário social no extremo sul da Bahia gira em torno do colonizador. Há vários monumentos históricos na cidade, ruas, que fazem referência ao processo de colonização", pontua Ramon Rafaello, antropólogo formado pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), e estudioso das questões relacionadas ao território indígena em Porto Seguro, principalmente na região de Monte Pascoal.

Na tentativa de inverter essa lógica e recuperar o passado do povo pataxó, Ramon e Karkaju construíram juntos um documentário de recuperação de memórias dos indígenas da região. O produto reuniu relatos de anciãos pataxó que reconstruíram o Fogo de 51, acontecimento histórico que revela conflitos entre os pataxó, o Estado e a população local.

Realizado com o apoio do Núcleo de Pesquisa, Mídias e Arte (NUPOMAR), grupo de pesquisa comunitário, o filme revela os resquícios da violência do processo de colonização ignorado por anos pela história local.

'Memórias do Fogo de 51'

Traumático para toda uma geração de pataxó, o Fogo de 51 se refere ao incêndio premeditado da aldeia de Barra Velha, localizada em Porto Seguro, em 1951. O acontecimento é classificado por anciãos pataxó, memória viva do povo, como um massacre da população indígena na região.

Em meio a esforços para construir uma identidade nacional, o regime ditatorial de Getúlio Vargas instaurou, em 1943, o Parque Nacional do Monte Pascoal, reserva ambiental da Mata Atlântica em Caraíva, comunidade ribeirinha pertencente à Porto Seguro, que existe até os dias atuais.

Sem território e reconhecimento estatal enquanto etnia, os indígenas Pataxó foram proibidos de realizar práticas tradicionais como a pesca na região, com a justificativa de proteção ambiental. Este contexto levou ao sufocamento da população, que sofreu com a escassez de alimentos.

"Até 1970, o povo pataxó foi considerado extinto pelo Estado e só em 1992 teve seu território demarcado. Então, imagine que em 1943, quando foi implantado o parque, que se iniciou uma luta pelo reconhecimento desse território. O regime de construção da identidade nacional incluía o apagamento dessas territorialidades", explica Ramon.

Na contramão às dificuldades do povo pataxó, grandes famílias extrativistas da região continuavam a explorar a área, que hoje é reconhecida como terra indígena. Vivendo em um contexto de rejeição completa por parte da população local, casos de agressão aos pataxós vinham sendo registradas no Parque Nacional de Monte Pascoal. Revoltados, os pataxós da região saquearam os estoques de mantimentos de Teodomiro Rodrigues, um dos extrativistas da época.

Isso levou ao incêndio proposital da aldeia de Barra Velha pela polícia local, motivada por boatos de que os "caboclos" de Barra Velha haviam desencadeado uma onda de violência na cidade. Os anciãos relatam que, durante o ataque, diversos indígenas foram mortos, mulheres foram estupradas e famílias inteiras fugiram de Barra Velha, se espalhando pela região.

História enterrada

Sistematicamente ignorado, este acontecimento é pouco conhecido pela população do extremo sul do Estado e abordado apenas em trabalhos acadêmicos. Neste contexto, a resistência do povo pataxó é um dos poucos movimentos que busca quebrar a lógica do colonizador, ainda presente na dinâmica cultural da região.

O documentário "Memória do Fogo de 51" surge como uma ferramenta dessa resistência, que estabelece um movimento muito recente de resgate e reestruturação da história do povo pataxó.


Foto: Ramon Rafell
"No primeiro momento havia uma preocupação, porque falar da questão do Fogo de 51 é um assunto delicado para o povo pataxó. Porém, o projeto foi construído com muita sensibilidade", conta Karkaju Pataxó, sobre a construção do documentário. O processo não foi simples, uma vez que muitos anciãos fugiram da região ainda muito novos. Segundo o líder indígena, o trauma do acontecimento tornou difícil que os anciãos falassem sobre o assunto.
Apesar das dificuldades, o documentário reuniu relatos de anciãos das aldeias de Barra Velha e Pará , localizadas em Porto Seguro, na Terra Indígena (TI) Barra Velha e na aldeia Velha, em Arraial d´Ajuda (distrito de Porto Seguro), na Reserva Indígena Pataxó Aldeia Velha.
Através da experiência deles, este momento da história local começou a ser reconstruído, possibilitando uma análise mais realista da relação do povo pataxó com o Estado e população em geral.
O produto foi um esforço para registrar a história da etnia indígena, que possui tradição oral e familiar. "Tivemos a oportunidade e a felicidade de encontrar alguns desses anciãos com vida, saúde, e dispostos a falar e relembrar esses acontecimentos dolorosos", conta Ramon, que dirigiu o filme.
Ainda que inicial, este movimento possibilita a construção de um novo regime de memória, um que leve em consideração a pluralidade da identidade nacional e a diversidade do povo brasileiro."Estamos em um processo de reconstrução da história do Brasil, do extremo sul da Bahia", pontua Ramon.

Assista ao documentário completo:

*Sob supervisão de Danutta Rodrigues.


Fonte Ibahia


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