Porto do Moreira comemora 80 anos neste 7 de setembro com tudo em cima Imune à degradação do Centro Histórico, o restaurante tampouco se rendeu às inovações que dão a tudo cara de lanchonete e pressa de fast-food


Foto: Tácio Moreira / Metropress

Por: James Martins no dia 07 de setembro de 2018 às 08:55

Em 7 de setembro de 1822, quando proclamou a Independência do Brasil, D. Pedro I sentia fortes dores de barriga, devido a alguma gororoba que comera no litoral paulista. Já em 7 de setembro de 1938, como que para redimir o imperador e todos os estômagos e paladares brasileiros, nascia o restaurante Porto do Moreira: manancial de boa comida e boa convivência, proclamador da independência de relógios e protocolos e que, portanto, comemora 80 anos nesta sexta (7).

São 80 anos de tradição, mas uma tradição renovada, que une gerações, costumes e tecnologias em um amálgama tão perfeito quanto o do dendê com a oliva que a casa combina tão bem. "Aqui é um restaurante medieval, não seguimos esses padrões atuais, onde tudo é controlado, medido. Se um cliente quer mais um pedaço de chouriça no cozido, eu vou negar? Não. Não faço questão de nada, tudo se ajeita", diz Chico Moreira, anfitrião que segura a peteca desde a morte seu irmão Antônio, o outro herdeiro do velho José Moreira, em janeiro.



Chico, porém, não está sozinho. Além da farta clientela-amiga (com pessoas de vários tipos, cores, idades e classes-sociais) ele conta com sua filha, Maria Cristina, 42 anos, na administração. E assim como os filhos dos clientes tradicionais remoçam as mesas, Cristina renova o balcão e o Porto do Moreira permanece vivo, ancoradouro seguro pra quem quer comer bem, na mais perfeita tradição de pai pra filho. Ou melhor: pra filha! Em consonância ainda com o empoderamento feminino. “Para mim é uma honra ajudar a manter esse lugar que é tão querido de tanta gente, nossa família é enorme”, diz Cristina, que traz a arte da gentileza no DNA. 

A proximidade com o extinto Diários de Notícias fez do Moreira um reduto de jornalistas (além de músicos, poetas e boêmios em geral). Frequentado nos anos 1950/60 tanto pelo patrão Odorico Tavares quanto pelo então redator Glauber Rocha, atualmente essa tradição continua. "Adoro almoçar aqui depois da faculdade. Conheci o Moreira com minha mãe e hoje trago minhas amigas", diz a jovem jornalista Fernanda Lima, 21, que batizou na última terça (4) duas colegas, Priscila Melo e Rafaela Pereira, na famosa moqueca-de-carne. “Pra terminar, tem que ter essa sobremesa: goiabada com creme-de-leite”, explica Fernanda, cheia das manhas.

Pois mal as novinhas levantaram e, como se fosse combinado para validar o argumento, o veterano do jornalismo Zé Raimundo sentou-se na mesma mesa acompanhado também por colegas de sua faixa-etária, esses de São Paulo, que ele igualmente introduzia na confraria local. “Gosto de tudo, mas a moqueca-de-carne é imbatível!”, diz. E eis que temos um bom painel, quase um ideograma da renovação do octogenário Porto do Moreira (restaurante e casa de pasto): saem as jovens, entram os experientes - numa linha que segue sossegadamente para além da cronologia.

SENHA AMIGA
Antes das maquininhas sem fio, os garçons do Moreira tinham as senhas dos cartões dos clientes fiéis, para eles não se darem nem ao trabalho de levantar para digitar. Pire aí! Prática impensável em um restaurante comum.

PARA MANCHA E PRO FIGUEREDO
Além da caixinha de remédios, Cristina mantém sempre um tira-manchas à mão para socorrer os fregueses mais desastrados. Os remédios são variados, de analgésicos a antiácidos, mas os mais procurados são aqueles que liberam o fígado para umas boas doses a mais. Já no quesito manchas, as de dendê são as mais comuns, mas saem, sim, com jeitinho e Semorin — que ora substitui o Vanish.

MARCANTE
A famosa marca do restaurante, um Galo que já rodou o mundo, foi criada pelo artista plástico Jair Dantas, o Jairzinho. Na galeria do Moreira (que é rica e inclui uma bela tela de Reginaldo Bonfim), destaca-se uma Nossa Senhora da Conceição da Praia feita por Carybé. Ela está ali, na entrada da cozinha, abençoando, como um ingrediente a mais muito bem harmonizado com a receita.

A galeria de casos e personagens ilustres envolvendo o Porto do Moreira demandaria um livro inteiro. Aliás, por falar em livro, em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, Jorge Amado diz que o pacato farmacêutico Teodoro Madureira, quando começou a se fretar para a viúva, “deu de almoçar e jantar no restaurante do português Moreira”. "Aqui é como o quintal de uma casa: a gente come uma boa comida caseira, conversa, se encontra... e o pagamento é só uma consequência", resume bem Zulu Araújo, diretor da Fundação Pedro Calmon, iniciado à confraria pelo poeta Capinan, então estudante de medicina, há 40 anos. "Eu nunca vim aqui para não encontrar algum amigo", completa. E pela lei natural dos encontros, o Porto do Moreira se impõe, nesses 80 anos, tanto à degradação geral que corrói a Bahia, sobretudo o Centro Histórico, quanto ao aviltamento das falsas novidades que descaracterizam a boa terra e dão a tudo o aspecto e o pique de lanchonete. Salve, salve!


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