Bolívia apresentará duas visões diferentes na Cúpula Mundial sobre Sistemas Alimentares

A Posição do País identifica duas vertentes: o sistema de produção de alimentos baseado na agricultura tradicional e o sistema alimentar baseado no agronegócio.

Por outro lado, nesse mesmo mês, por um período de duas semanas, cerca de mil representantes de associações, organizações de pequenos e médios produtores, instituições não governamentais, organizações eclesiais, grupos de cidadãos, academia, gastrônomos e consumidores convocados pelo Movimento Agroecológico Boliviano (MAB), realizou 14 diálogos a nível nacional sobre sistemas alimentares; onde identificaram e elaboraram propostas de ação, voltadas para sistemas agroecológicos de alimentos.

A diferença de ambos os processos está na natureza e nas propostas de ambos os processos.

A primeira é que a proposta do Governo foi trabalhada pelo Itamaraty boliviano denominando-a "Posição do País" e da sociedade civil foi construída a "Agenda para a transição agroecológica dos sistemas alimentares".

Mas o que são sistemas alimentares e soberania alimentar?

Um sistema alimentar é constituído por todos os elementos como o ambiente, população, recursos, processos, instituições, infraestruturas e atividades relacionadas com a produção, processamento, distribuição, preparação e consumo de alimentos, bem como os resultados dessas atividades em nutrição e estado de saúde, crescimento socioeconômico, equidade e sustentabilidade ambiental.

O Estado define soberania alimentar como o direito de cada país e de seus cidadãos em estratégias sustentáveis ​​de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a uma vida saudável e nutritiva para toda a população. Isso deve ser feito de forma coerente, respeitando e apoiando as culturas e a diversidade dos sistemas de produção, comercialização, distribuição e gestão das áreas rurais e regiões em geral.

Aproximar-se de um sistema alimentar a partir da segurança ou da soberania alimentar não é a mesma coisa. Por isso, a segunda diferença é que a Agenda da Sociedade Civil é pautada pela Soberania Alimentar e inclui a abordagem sistêmica, de conjuntos e relações interdependentes [mlvc1] de uma complexidade: enquanto a Posição País se concentra apenas nas polaridades entre o camponês tradicional e o agronegócio.

A Posição do País identifica dois fluxos principais dentro dos sistemas alimentares; de um lado, o Sistema de Produção de Alimentos baseado na Agricultura Tradicional (SPAAT) composto por sistemas de produção e distribuição liderados por pequenos agricultores, camponeses e indígenas e redes locais de comercialização e abastecimento, articulados em torno de unidades produtivas familiares e comunitárias; e, por outro lado, o Sistema Alimentar Baseado na Agroindústria (SAA).

Porém, para a proposta da sociedade civil à frente do MAB, os sistemas agroindustriais alimentares não são compatíveis ou complementares com os sistemas agroecológicos (sistemas alimentares camponeses e indígenas), por isso em sua proposta rejeitam veementemente a coexistência dos dois sistemas, porque o agronegócio é baseado na maximização dos ganhos econômicos de curto prazo para os grupos empresariais oligárquicos, transformando os sistemas alimentares em um negócio (agronegócio).

Também garante que se caracterizem por pacotes tecnológicos patenteados (máquinas pesadas, sementes geneticamente modificadas, agroquímicos, etc.); pela expansão de terras para monoculturas em detrimento de florestas, ecossistemas vulneráveis ​​e territórios indígenas; além de que seu processamento é em larga escala e o comércio é principalmente para exportação; E, ao contrário da agroecologia, possuem alto apoio estatal e institucional em subsídios, apesar de ser um sistema produtivo anterior ao meio ambiente e à vida.

“No mundo globalizado de hoje, os Sistemas Agroecológicos Alimentares, complementares a outros sistemas sustentáveis, como indígenas e camponeses, têm pouco apoio institucional e são marginalizados por políticas e regulamentações”, destaca María Julia Jiménez, membro da Coordenadora do MAB.

Por isso, a proposta da sociedade civil exige que a Cúpula Mundial, a ser realizada em setembro em Nova York (EUA), inclua a soberania alimentar e a agroecologia como eixos transversais de transição para sistemas alimentares que cuidam e regeneram a vida. 

“A Agenda (da sociedade civil) exige da Cúpula Mundial que a soberania alimentar e a agroecologia sejam incluídas em seus eixos centrais, enquanto a Posição do País exige da Cúpula Mundial que o Sistema Alimentar baseado na Agricultura tradicional tenha um papel de liderança”, acrescenta Jiménez Para María Juliala Agenda da sociedade civil, especifica questões que devem ser enfrentadas com urgência, sem espaço para negociação, como a expansão da fronteira agrícola, a produção em grande escala para exportação, os incêndios florestais, a produção de biodiesel, a apropriação de terras comunitárias , a exploração dos povos indígenas e das mulheres, a privatização e o patenteamento de sementes. Desses pontos fracos, o governo só faz menção a: organismos geneticamente modificados (OGM) ou transgênicos, agroquímicos,

A Posição do País foca no setor produtivo, por exemplo, em estratégias para promover a diversificação, fortalecer os produtores, suas práticas e seus conhecimentos, deixando um papel mais passivo para o setor consumidor, que recebe educação alimentar, subsídios ou mercados de vizinhança, mas eles fazem não participar na tomada de decisões alimentares. Jiménez argumenta que a agenda do MAB busca sair do olhar reducionista que coloca a produção no centro dos sistemas alimentares. “Por isso inclui mais setores, como consumidores, agricultura urbana, intermediários, comerciantes e suas formas de se relacionar e se organizar”.

Por outro lado, o Estado propõe “novos indicadores para incorporar outro sistema alimentar”, que são: resiliência socioecológica (medida pelas capacidades de adaptação e mitigação, agro-biodiversidade, organização social e conhecimentos ancestrais); desempenho ambiental; pobreza e desigualdade; O direito à alimentação; e soberania alimentar. Em seu caminho crítico, segue a abordagem desenvolvimentista, promovendo a exportação de alimentos dos sistemas tradicionais.

Por sua vez, o MAB não especifica indicadores específicos para sistemas alimentares, mas sugere uma proposta mais inclusiva, que é a construção conjunta de indicadores por meio de um Observatório Independente da Sociedade Civil e funções como o controle social, através do qual construiriam coletivamente indicadores de todos os sistemas alimentares.

Ambas as propostas foram baseadas nas cinco vias de ação da Cúpula Mundial sobre Sistemas Alimentares, que são: garantir o acesso a alimentos seguros e nutritivos para todos; mudar para padrões de consumo sustentáveis; promover a produção positiva para a natureza em escala suficiente: caminhar em direção a modos de vida e distribuição de valor eqüitativos; e criar resiliência a vulnerabilidades, choques e tensões.

Propostas da sociedade civil

Diante da preocupação com os conflitos de interesses que possam estar presentes no processo conduzido pelos Governos e pelas Nações Unidas na Cúpula Mundial de Sistemas Alimentares, a sociedade civil, convocada pelo MAB de forma independente, atuou em espaços de diálogo que culminaram em demandas a ao Estado gerar uma “Estratégia de Transição Agroecológica e Regeneração da Mãe Terra, para que os alimentos produzidos na Bolívia, para consumo local ou exportação, sejam limpos, saudáveis, culturalmente adequados e de sistemas de vida harmônicos”.

Outra das propostas conclusivas da cúpula independente é gerar estratégias concertadas de abastecimento das cidades, com a articulação e acordo dos diferentes atores. “Informar, treinar e organizar a articulação de produtores agroecológicos e consumidores conscientes”, diz parte do documento apresentado no mês passado ao Itamaraty.

Da mesma forma, se propõe a tornar visível a vulnerabilidade das mulheres nos sistemas alimentares, pois esse gênero carrega consigo a sobrecarga de trabalho das tarefas realizadas em casa, a compra, seleção, conservação e preparo dos alimentos. Por isso, “é importante que a redistribuição desta obra seja visível e promovida, para ajudar a reduzir sua vulnerabilidade”, diz a quinta conclusão. Da mesma forma, busca restringir e substituir alimentos importados e contrabandeados que são comercializados na Bolívia.

“Enquanto a renda dos alimentos já produzidos na Bolívia não é controlada, está ajudando a reduzir a capacidade de geração de alimentos, por isso propõe-se promover políticas, programas e ações (como campanhas) para promover a substituição de o consumo de produtos importados de alimentos processados ​​locais, influenciando ativamente no aumento de seus índices de consumo ”, acrescenta o documento. 

Destaca também a criação de um Observatório Multiactor da sociedade civil como entidade que zela pelo cumprimento das políticas e estratégias alimentares, que deve contar com um quadro institucional próprio e autônomo que articule uma rede de atores, laboratórios, Centros de Pesquisa e Universidades para a realização do monitoramento da contaminação de águas, ar, sementes e solos, e realizar o monitoramento da contaminação da população humana e dos alimentos destinados ao consumidor final.

Proposta governamental

Para ajudar a reduzir a fome e todas as formas de desnutrição e reduzir a incidência de doenças não transmissíveis, a proposta do Governo considera necessário estabelecer diretrizes e mecanismos para promover hábitos alimentares saudáveis ​​na população boliviana, proporcionando condições favoráveis ​​para o uso da agrobiodiversidade local como fonte de novos produtos alimentícios de alto valor nutricional e que possuem uma clara ligação com a agroecologia.

Visa atingir esse objetivo ao desencorajar a importação de alimentos altamente e ultraprocessados, promovendo ativamente hábitos alimentares saudáveis ​​por meio da educação nutricional precoce.

Coincidindo com a proposta da sociedade civil, o Posicionamento do País considera necessário abordar o desenvolvimento dos mercados locais e internacionais a partir da geração de estratégias para aproveitar a diversidade e incorporar alimentos da agrobiodiversidade local em programas de compras públicas, como café da manhã escolar, subsídios, etc.

Da mesma forma, busca promover hábitos alimentares alternativos que tenham uma perspectiva positiva sobre a saúde pública local, o cuidado com os saberes tradicionais, o manejo de sementes nativas e a agrobiodiversidade local.

“Também é importante abordar a acessibilidade à terra, considerando a desigualdade de gênero e o rebaixamento de mulheres e jovens que incentivam a migração rural. As terras coletivas devem ser protegidas, evitando-se a propriedade individual quando esta rompe com o manejo local adequado da terra. Além disso, a migração do campo para a cidade deve ser abordada, principalmente pelo fato de a pandemia Covid-19 ter atraído populações para o retorno às suas comunidades ”, diz outra das propostas.

Quanto ao Sistema Alimentar baseado na Agroindústria, garante que estão gerando crises ambientais, sanitárias e de estratificação econômica e de pobreza, associadas à padronização da produção e dos alimentos, para o que sugere adequar suas práticas a partir da proposta do Sistema de Produção Alimentar baseado na Agricultura Tradicional, para ir além disso.

Degradação do solo

Na Bolívia, entre 35% e 50% dos solos agrícolas estão degradados. Segundo a FAO, mais de 60% da população “vive e produz neste ambiente degradante”, o que mostra a vulnerabilidade da população boliviana à insegurança alimentar. A degradação do solo se reflete nos baixos rendimentos que caracterizam a produção agrícola do país e na crescente dependência de alimentos importados, frescos e processados.

Nos últimos dez anos, a importação de alimentos tradicionais aumentou 54%, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística processados ​​pelo Instituto Boliviano de Comércio Exterior (IBCE).

Atualmente, a produção de alimentos in natura cobre apenas cerca de 62% da demanda do mercado interno, enquanto os 38% restantes são atendidos por importação, segundo estudo de Carola Tito Velarde e Fernanda Wanderley.

Segundo dados da FAO, 70% dos alimentos no mundo vêm da agricultura familiar. No caso do nosso país, segundo diversos estudos e estimativas, como os do Ministério do Desenvolvimento Rural Territorial, a agricultura familiar contribui com 40% a 60% dos alimentos consumidos no país.

No entanto, a produção de alimentos estaria em risco, pois quase 50% dos solos bolivianos estariam em processo de desertificação, afirma Fernando Canedo, presidente do MAB e representante da Plataforma Nacional de Solos.

“De que soberania e segurança alimentar falamos se estamos esgotando a base produtiva que é o solo (...) É por isso que temos promovido diferentes sistemas, sistemas de policultura e não monocultura, porque esta antecede e destrói a solo ", acrescenta Canedo.

Assegura também que, como plataforma durante dez anos, propuseram diferentes autoridades, como os ex-ministros do Desenvolvimento Rural e Lands Nemesia Achacollo e César Cocarico respectivamente, e ainda autoridades do atual governo; a Lei de Solos que visa proteger, conservar e melhorar os solos de forma integral e sustentável com os demais recursos naturais, por meio de incentivos e planejamento adequado.

“Estamos praticamente perdendo a esperança de que isso saia porque aparentemente o Governo não vê a questão dos solos como uma questão prioritária, acho que há outros interesses na questão dos solos, especificamente as terras”, pontua.

Por isso, garante que a transição para a agroecologia é buscada a partir da Agenda da Sociedade Civil, pois esse sistema de produção implica uma rotação de culturas com convivência com organizações indígenas indígenas e com o meio ambiente.

“Por meio de técnicas temos promovido diversas ações para que o solo permaneça vivo, saudável. Um solo saudável nos dará uma alimentação saudável e uma alimentação saudável nos dará melhor saúde às pessoas”, finaliza.

Comida, um assunto para todos

A Constituição Política do Estado faz menção explícita à segurança e soberania alimentar no artigo 16 inciso II dos direitos fundamentais: “O Estado tem a obrigação de garantir a segurança alimentar, por meio de alimentação saudável, adequada e suficiente para toda a população.”. Em outras palavras, indicou, “que o direito à segurança e soberania alimentar implica, em sua essência, a proibição da importação, produção e comercialização de organismos geneticamente modificados que possam causar danos à saúde dos bolivianos”.

No artigo 407, refere-se que: “São objetivos da política de desenvolvimento rural integral do Estado, em coordenação com as entidades territoriais autônomas e descentralizadas: 1) Garantir a soberania e segurança alimentar, priorizando a produção e o consumo de alimentos de origem agrícola produzido em território boliviano ”.

Embora exista uma legislação que garanta a segurança alimentar, a realidade está longe do seu cumprimento.

É por isso que o Movimento Agroecológico Boliviano (MAB) exige que o Governo faça cumprir o que está estabelecido em lei para evitar a entrada de diferentes alimentos e patrocinar técnicas de produção ambientalmente corretas para ter uma alimentação saudável, limpa, diversa e ecológica.

O MAB destaca ainda que existe um desincentivo, principalmente para os pequenos produtores, que no século 21 continuam a pesar diversos problemas como acesso a estradas, sementes nativas gratuitas, entre outros.

“A Bolívia não pertence apenas ao empresariado de Santa Cruz ou às grandes empresas transnacionais do leste porque parece que estamos nos tornando seus arrendatários, porque aos poucos vemos a enorme quantidade de queimadas para gerar monoculturas”, lamenta Canedo.

Canedo também garante que os sistemas alimentares devem ser eqüitativos, inclusivos, sustentáveis ​​e justos, pois no pequeno produtor que passa por diversas vicissitudes para levar seus produtos aos mercados, os compradores pedem um desconto pagando um preço, em muitos casos, abaixo despesas de produção.

“Nós, bolivianos, não estamos incentivando, preferimos consumir outros produtos, devemos consumir e preferir os nossos (...) não podemos prejudicar nossos irmãos produtores”, afirma Álvaro Mollinedo, vice-ministro do Desenvolvimento Rural e Agropecuário.

A Posição do País indica que é fundamental considerar a relação entre o preço dos alimentos e sua forma de produção.

Por exemplo, nos sistemas agroindustriais alimentares não consideram em seu preço final, os danos ao meio ambiente e à saúde gerados por sua forma de produção associados à padronização de alimentos com baixos níveis nutricionais; Por outro lado, produtos sustentáveis ​​não recebem receitas justas que considerem sua contribuição nutricional, que posteriormente têm impacto na prevenção de crises de saúde por serem um potencial gerador de resposta imunológica devido às suas condições nutricionais.

“A pandemia nos mostrou como as cidades se transformaram em pequenas feiras praticando o que a agroecologia nos mostra, que afirma que são os curtos-circuitos que podem nos alimentar e não necessariamente as grandes redes de supermercados”, diz María Julia Jiménez.

Por outro lado, Fernando Canedo afirma que no mercado o produto mais barato é o contrabando e garante que verificaram objetivamente que em muitos países limítrofes da Bolívia fazem uso indiscriminado de agrotóxicos e que em algum momento isso prejudicará a saúde da população ao gerando uma doença fatal.

“As boas dietas estão nas mãos de populações economicamente capacitadas e os mais pobres estão encapsulados em dietas altamente processadas, com alto teor calórico e sofrendo de desnutrição associada à obesidade; ou seja, somente populações ricas poderão se alimentar de alimentos saudáveis ​​”, diz parte do texto da Proposta de País.

É então que a população em geral também desempenha um papel fundamental nos sistemas alimentares, pois, quando se trata de ir ao mercado comprar os seus produtos alimentares, tem a responsabilidade de comprar não contrabando mas sim produtos locais e pagar um preço justo por eles.





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