"ENTRE A TRADIÇÃO E A IMPOSIÇÃO: O CONFLITO DAS DIETAS NO CONTEXTO DOS POVOS TRADICIONAIS"

Conservar a cultura alimentar dos povos tradicionais beneficia a população como um todo

O conhecimento da biodiversidade de espécies alimentícias serve para o desenvolvimento de medicamentos e enriquece a dieta da população

O conceito de cultura remete à diversidade de crenças e práticas que são construídos ou partilhados no interior de uma sociedade. Isso não é diferente para os sistemas alimentares: quando essas ideias e práticas tocam o universo da alimentação, chama-se cultura alimentar. 

“Especificamente sobre sistemas alimentares tradicionais, que são aqueles em que as pessoas plantam e colhem o que comem, há cada vez mais evidências de seus inúmeros benefícios, o que inclui a diversidade de alimentos consumidos e a qualidade da dieta, com uma diversidade maior de nutrientes importantes para a nossa saúde”, diz Michelle Jacob, nutricionista e parceira do Núcleo de Extensão Sustentarea da Faculdade de Saúde Pública da USP.

A transmissão de conhecimentos sobre a biodiversidade e cultura constrói os sistemas alimentares dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, entre outros.

Para isso, é importante registrar conhecimento deles sobre quais alimentos são comestíveis na natureza e como prepará-los. Para Michelle, um passo importante para resguardar essa cultura é cuidar dessas pessoas.

Muitas culturas tradicionais, especialmente no Brasil, aproveitam partes dos animais que são frequentemente descartadas em outros contextos. As vísceras e os miúdos têm um significado cultural importante e são uma parte essencial da alimentação em várias comunidades. A feijoada, como você mencionou, é um excelente exemplo disso.

Originária da época da escravidão, ela usava as partes menos valorizadas dos animais, como orelha, pé, língua e fígado de porco, transformando esses ingredientes em um prato saboroso e nutritivo, refletindo a criatividade e a resistência das populações negras.

Esse aproveitamento das vísceras também é visto em outros pratos típicos, como o sarapatel, as dobradinhas, ou o uso de miúdos em diversas regiões do Brasil. 

Esse aspecto da culinária tradicional tem a ver com a sabedoria popular de não desperdiçar alimentos e com o aproveitamento integral dos recursos naturais e dos animais, o que também remonta a práticas de sustentabilidade e respeito ao ciclo da vida.

Nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, os miúdos e vísceras também têm uma forte presença, e isso está diretamente ligado à prática de oferendas e rituais. Durante as cerimônias, há uma conexão profunda com a ancestralidade e a espiritualidade, e os alimentos usados nas oferendas, muitas vezes, incluem partes dos animais que simbolizam diferentes aspectos das divindades (Orixás).

Pratos como caruru ou feijão de corda, por exemplo, podem ser preparados com miúdos e vísceras. Esses pratos são utilizados para alimentar os Orixás durante rituais de celebração ou de agradecimento, e os miúdos, como fígado, coração, língua e tripas, têm um significado simbólico que vai além do alimento físico, ligando os praticantes às forças espirituais e à preservação das tradições culturais.

Esses alimentos, muitas vezes provenientes de matanças realizadas de forma ritual, estão entrelaçados com a ideia de sacrifício, não só físico, mas também espiritual, e são considerados formas de fortalecer os laços com os Orixás e com os ancestrais. Além disso, essa prática de aproveitamento integral dos animais reflete o respeito e a valorização dos recursos naturais, em sintonia com a sabedoria ancestral sobre sustentabilidade e respeito à vida.

MUDANÇAS ESTRUTURAIS E OS LOBBYS ALIMENTARES

Esse é um tema complexo e que gera debates intensos. Grupos de lobby com forte presença no mercado, incluindo alguns do movimento vegano, muitas vezes buscam impor novas visões sobre a alimentação, que podem ser contrárias aos hábitos e práticas alimentares de povos tradicionais. 

No contexto de comunidades que mantêm uma relação histórica com seus alimentos e suas culturas alimentares, essa imposição pode ser vista como uma tentativa de homogeneização cultural.

A alimentação tradicional de muitas comunidades, especialmente entre povos indígenas e quilombolas, é profundamente conectada ao território, à ancestralidade e à biodiversidade local. 

As escolhas alimentares dessas comunidades não são apenas práticas nutricionais, mas também refletem cosmologias, identidades e modos de vida sustentáveis. 

A introdução de dietas baseadas em conceitos de "sustentabilidade" ou "saúde" por grupos de lobby pode colocar essas práticas em risco, ignorando as realidades locais e a relação simbiótica com os alimentos e o meio ambiente.

Além disso, o ativismo vegano, muitas vezes defendendo uma agenda que busca eliminar o consumo de produtos de origem animal, pode inadvertidamente marginalizar as soluções alimentares que esses povos utilizam, que podem envolver produtos de origem animal como parte essencial de suas dietas, em um equilíbrio com os vegetais, folhas e outros recursos.

Essas dinâmicas criam um dilema ético e político, em que se confrontam os interesses globais de grandes corporações e grupos de pressão, com a necessidade de preservação das tradições alimentares e culturais locais. 

MOVIMENTOS DE RESGATE DA TRADIÇÃO ALIMENTAR 

Nos últimos anos, tem crescido o interesse por práticas alimentares que resgatam a valorização de alimentos muitas vezes negligenciados, como os miúdos e as entranhas de animais.

Em diversas culturas, especialmente na Europa, essas partes do animal têm uma longa tradição na culinária, sendo consumidas tanto por questões de aproveitamento integral quanto por suas características únicas de sabor e textura.

A alimentação feita de vísceras pode ser considerada sustentável e nutritiva por várias razões. Aqui estão alguns pontos-chave que podem ajudar a comprovar isso:

1. Aproveitamento integral do animal: Ao utilizar vísceras, evita-se o desperdício e se aproveita ao máximo o animal, o que contribui para uma prática mais sustentável em relação ao consumo de carne. A ideia de utilizar todos os elementos do animal também está alinhada com a sustentabilidade e a economia circular, onde nada é desperdiçado.

2. Valor nutricional: As vísceras são fontes ricas de nutrientes essenciais. Fígado, por exemplo, é uma excelente fonte de ferro, vitamina A e vitaminas do complexo B, enquanto o coração e os rins oferecem proteínas de alta qualidade e minerais como zinco e selênio. Esses órgãos são alimentos densos em nutrientes, muitas vezes mais ricos do que os cortes musculares tradicionais.

3. Baixo impacto ambiental: A criação de animais, especialmente para cortes nobres, pode ter um impacto ambiental significativo devido ao uso de recursos como ração, água e energia. Ao consumir as vísceras, a pressão sobre esses recursos pode ser reduzida, já que elas frequentemente não têm o mesmo valor de mercado e, portanto, não exigem o mesmo nível de produção.

4. Cultura e tradição: Em muitas culturas, o consumo de vísceras tem sido uma prática ancestral, mostrando sua valorização tanto pelo sabor quanto pelos benefícios nutricionais. Reviver essa prática pode ser uma forma de preservar a diversidade alimentar e os saberes tradicionais.

5. Diversificação da dieta: Incluir vísceras na alimentação pode ampliar o repertório gastronômico e nutrir de maneira mais diversificada, respeitando os ciclos naturais dos alimentos e proporcionando uma dieta mais equilibrada.

História

As vísceras fazem parte da dieta humana desde o surgimento da culinária, o que permitiu que partes de animais, de outra forma indigestas, se tornassem comestíveis e fornecessem uma infinidade de nutrientes encontrados em quantidades consideravelmente maiores do que no tecido muscular.

Na história mais recente, nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, o ex-presidente dos EUA e líder da Administração de Alimentos dos EUA Herbert Hoover escreveu na revista What's New in Foods and Nutrition sobre o estado do suprimento de carne americano. A carne foi considerada tão importante para a guerra "quanto tanques e aviões".

O slogan "A comida vencerá a guerra" foi pioneiro, e as Segundas-feiras sem carne foram iniciadas em uma tentativa de conservar recursos, pois quantidades crescentes de carne bovina e suína, bem como manteiga e queijo, eram enviadas para o exterior para alimentar as tropas americanas e aliadas. Com mais carne indo para o exterior, o racionamento foi instituído em casa e porções menores foram vistas nos pratos das famílias americanas.

Ao mesmo tempo, a carne era considerada um alimento básico na dieta americana. A carne bovina era especialmente valorizada, e sua presença reduzida deixava muitos com a sensação de não terem tido uma refeição adequada, segundo alguns relatos.3 Com o racionamento de carne, um mercado negro se desenvolveu no comércio de carne, fornecendo produtos racionados a preços exorbitantes.

Em 1940, o National Research Council reuniu o Committee on Food Habits, liderado pela antropóloga Margaret Mead, para examinar os hábitos alimentares americanos e suas influências. O objetivo era elaborar uma maneira de persuadir os americanos a abrir mão de seus cortes favoritos de carne em troca das partes frequentemente deixadas no chão do matadouro — corações, fígados, rins e outros órgãos.

Mead e o comitê acreditavam que, para encontrar a melhor maneira de encorajar o público a comer vísceras, eles primeiro tinham que descobrir por que elas não estavam sendo usadas.

Comida e identidade cultural estão profundamente interligadas, e quase todas as culturas do mundo têm pelo menos alguns sabores clássicos ou pratos exclusivos para a população.

Na época, havia um estigma socioeconômico associado ao consumo de vísceras. Muitos americanos acreditavam que vísceras eram para os pobres rurais — e era verdade que os pobres rurais comiam mais vísceras do que seus pares urbanos e suburbanos. Esse estigma provavelmente tinha um componente racial também. Por exemplo, chitterlings (“chitlins”), feitos de intestinos de porco, tornaram-se um alimento básico nas dietas dos afro-americanos durante a escravidão, enquanto os proprietários de escravos brancos mais ricos jantavam a carne de porco de primeira qualidade.

Movimentos como o "Nose-to-Tail" no Reino Unido, a culinária de vísceras na França e na Espanha, o movimento Slow Food e o conceito de "Zero Waste" têm incentivado o retorno a essas práticas, que além de promoverem a sustentabilidade alimentar, buscam preservar receitas tradicionais e combater o desperdício. Essa valorização das chamadas "comidas de matança" se alinha com uma crescente busca por um modelo de alimentação mais consciente e conectado com as raízes culturais e históricas dos povos.

Existem vários movimentos internacionais que buscam resgatar e estimular o consumo de alimentos tradicionais, como miúdos e entranhas de animais, especialmente dentro das culturas culinárias europeias. Esses movimentos geralmente estão ligados à valorização de práticas alimentares tradicionais e sustentáveis, além de um retorno a uma alimentação mais completa e menos desperdiçadora. Alguns desses movimentos incluem:

1. Movimento "Nose-to-Tail" (Cordeiro ao Rabo) – Este movimento, que começou no Reino Unido e foi popularizado pelo chef Fergus Henderson, foca no aproveitamento total do animal, incluindo miúdos e entranhas. O movimento defende que o consumo responsável de carne envolve não apenas os cortes mais populares, mas também partes frequentemente descartadas, que podem oferecer sabores e texturas ricas.

2. Culinária de "offal" (ou vísceras) na França e Espanha – Na França, por exemplo, pratos como o andouillette (uma salsicha de vísceras) e o tripou (prato de tripas) são tradicionais, especialmente em regiões como Lyon. A Espanha tem uma rica tradição de pratos com miúdos, como os callos (estufado de tripas), e o movimento em torno do desperdício zero reforça o consumo desses cortes menos valorizados.

3. Slow Food – O movimento Slow Food, iniciado na Itália e espalhado pelo mundo, promove a preservação das tradições alimentares locais e a valorização de ingredientes pouco utilizados. Esse movimento incentiva, entre outras coisas, o consumo de miúdos e entrañas, como uma maneira de manter as práticas culinárias antigas e combater o desperdício alimentar.

4. Movimento "Zero Waste" – Esse movimento global, que também abrange questões relacionadas à gastronomia, tem incentivado o consumo consciente e sustentável. Parte dessa filosofia envolve o reaproveitamento total do animal, incluindo o consumo de partes frequentemente negligenciadas como fígado, coração, rins e tripas, alinhando-se com a tendência de minimizar o desperdício alimentar.

Esses movimentos muitas vezes estão associados à busca por um modelo mais sustentável de produção e consumo de alimentos, além de estarem ligados ao resgate de tradições culturais alimentares, celebrando a integralidade de práticas culinárias que respeitam a totalidade do ser, da terra e dos animais.

Em última análise, o desafio está em encontrar um equilíbrio entre a necessidade de respeitar as práticas alimentares locais e a busca por um consumo mais sustentável e ético, sem impor modelos externos que desconsiderem as especificidades culturais, históricas e ecológicas das comunidades tradicionais. Esse é um dilema que, ao ser enfrentado com sensibilidade e respeito, pode abrir caminhos para uma alimentação mais consciente e integrada com as raízes culturais e ambientais.


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