Ponte de Lima resgata "tesouros" da gastronomia perdida

Após um ano de trabalho no terreno para levantamento do receituário por uma equipa liderada pelo antropólogo Álvaro Campelo, algumas receitas foram recuperadas pelo chef Marco Gomes. E apresentadas durante o mês de julho em workshops, promovidos pela Câmara Municipal e pela Confraria Gatronómica do Sarrabulho à Moda de Ponte de Lima, a cerca de uma dúzia de empresários de restauração.

Em setembro será publicado um livro (primeira edição) que reproduzirá 100 receitas e modo de fazer e futuramente toda a informação relativa ao meio milhar de pratos será vertida num portal na Internet intitulado "Ponte de Lima à Mesa", de acesso universal.

"O objetivo do município é recolher este património gastronómico que estava a ficar esquecido e perdido. A equipa técnica do antropólogo Álvaro Campelo recolheu 520 receitas que estão devidamente organizadas e contextualizadas, e que vão resultar num livro inicial com 100 receitas. A ideia é ir publicando mais nos meses seguintes", afirma o Vereador do Turismo e Desenvolvimento Rural, Paulo Sousa, destacando a importância de fazer "a transferência de conhecimento de gerações de antigas cozinheiras que hoje tem 70 e 80 anos e que cozinhavam para batizados, casamentos e outros momentos da vida social ligada ao mundo rural". E também de preservar e divulgar "receituário de antigos solares, de casas nobres, e de receitas ligadas aos produtos locais das quatro estações do ano".

Gastronomia "de elite e da fome"

Álvaro Campelo que coordenou o trabalho de campo, em aldeias e na vila de Ponte de Lima, conta que foi recolhido receituário antigo que "está quase a desaparecer". E que demonstra o que era cozinhado antigamente "nas casas, nos casamentos, batizados, festas, romarias e eventos de família". Tanto "em casas nobres" como pelo povo. "Foram entrevistadas cozinheiras antigas, mas também senhoras domésticas que nos falaram da gastronomia do quotidiano. De alguma forma da gastronomia da fome. Aí encontramos o saber, a habilidade e capacidade que o povo tem de superar momentos difíceis", descreve, destacando que foi identificada "uma gastronomia extremamente simples, mas muito rica de sabores".

O especialista destaca o património gastronómico que foi gerado antigamente em Ponte de Lima pela "relação entre as casas das famílias enobrecidas e o povo, porque algumas domésticas iam servir os nobres". "Essas mulheres viam pratos elaborados de elite que reproduziam em suas casas de uma forma diferente com outros produtos e com criatividade. E por outro lado levavam para as casas de elite hábitos e soluções que ali não existiam", explica, adiantando que, entretanto, "já se perdeu muito do que se passou das avós para as mães e para as netas".

Exemplos disso são "o bolo do tacho, algumas chouriças e doces, e a cabidela de cabrito que é muito rara. Nasceu da sabedoria do povo e da necessidade de aproveitar tudo [as sobras e miúdos do animal]".

Marco Gomes, chef transmontano, confessa-se "um apaixonado pela gastronomia tradicional portuguesa" (é autor do blogue comidadesubsistencia.com) e, por isso, agarrou com vontade o desafio de Ponte de Lima. "Estar inserido neste projeto é ouro sobre azul. Não se trata de reinventar e de inovar a gastronomia, trata-se apenas de a colocar como ela era nos dias de hoje. É um prazer enorme pegar na simplicidade das gentes antigas e trazê-la para a atualidade", comenta, referindo: "Há muita gastronomia escondida seja em Ponte de Lima, seja em qualquer parte do país. Somos tão pequenos e tão ricos, que este tipo de trabalhos são de louvar".

O chef confessa-se ele próprio "surpreendido" com o sabor que descobriu em Ponte de Lima, como o pudim de maçãs. "É simples, mas tem história, é muito rico e guloso. Quero fazê-lo no meu restaurante", disse, elegendo o bolo do tacho como seu favorito, entre os pratos que foi convidado a "reconstruir" com base em receitas das mulheres limianas. "Apaixonei-me pela sua confeção. Também se chamava 'bolo de matar a fome' e entende-se porquê, porque é tão pobre e tão rico ao mesmo tempo. Basicamente leva farinhas de milho, trigo e de centeio, fermento para levedar como o pão, e depois um bocado de toucinho", explica, concluindo: "Aquela massa pousa em cima da carne gorda e cozinha lentamente dos dois lados. A gordura do toucinho invade aquele pão e fica tão saboroso...".

Cristina Mendes, Presidente da Confraria Gastronómica do Sarrabulho à Moda de Ponte de Lima, louva "o trabalho meritório" da autarquia, em prol da descoberta "dos muitos tesouros que estão adormecidos" naquele concelho do Alto Minho. "O objetivo é não deixar que morram. Trazê-los para o presente e dinamizar assim as nossas raízes culturais. Um povo sem memória não existe", afirma.

Francisco Calheiros, nascido no Paço de Calheiros em Ponte de Lima, também enaltece o resgate do património gastronómico da região, enriquecido pela convivência da nobreza e do povo nas cozinhas. "Entre as elites e as pessoas mais humildes, digamos assim, sempre houve uma fortíssima interação. Nunca houve separação. Eu próprio desde pequenino sempre andei a calcorrear de cozinha em cozinha de terra batida e de lareira com potes, onde se assava o chouriço e se comia a broa ainda quente saída do forno", recorda o 'Conde de Calheiros', comentando: "Na minha casa os empregados começavam a trabalhar às seis da manhã e faziam um intervalo às dez para irem à cozinha comer um caldo. Esse caldo coincidia com o meu pequeno almoço e, portanto, o meu pequeno almoço não era café com leite, nem torradas. Era caldo de farinha e couves que é uma maravilha".

"Essas vivências estão associadas à gastronomia local e agora tentamos revive-las e reativá-las, através do resgate e pesquisa desse receituário. É importante ser capaz de o revitalizar, associado aos vinhos e ao turismo, porque tem cada vez mais procura", disse.

Fonte: JN

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