Veja a carta que Erico Verissimo mandou a Jorge Amado em 1961

A relação entre a dupla foi marcada por muitas afinidades

Exposta na Fundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho, em Salvador (BA), a carta enviada por Erico Verissimo ao colega baiano revela um momento de instabilidade do escritor gaúcho. Foi escrita no inverno de 1961 — em um "domingo sombrio", com "a temperatura a quase zero", anota Erico —, no dia posterior à primeira saída de casa após longo período de convalescença de um infarto do miocárdio. No sábado, ele tinha ido ao barbeiro e ao cinema para assistir a "um policial inglês muito gostoso", além de andar "umas boas doze quadras" pelas amenas ladeiras de Petrópolis (seguindo recomendações médicas). Essas caminhadas eram feitas de braço dado com a mulher, Mafalda, com passos de "velhas inglesas, parando a qualquer pretexto" (como explicou em outra ocasião). 

Erico se refere à mulher como "uma grande enfermeira, além de uma admirável companheira". Acerca de Mafalda, com quem estava casado desde 1931, já havia afirmado: "Ela é, de longe, a melhor cabeça da família. Eu, muito burro, levei tempo para descobrir que ela sempre tinha razão". O elogio reflete a afinidade que havia entre as personagens femininas de sua obra (de Clarissa a Ana Terra) — com "mais consistência, tenacidade e complexidade psicológica" em comparação aos homens, como observou o escritor e professor Flávio Aguiar — e as mulheres de carne e osso da vida de Erico, a começar pela mãe — Abegahy, a dona Bega, que morreria em 1963. 

Certa vez, Erico revelou só ter feito "as pazes" com o pai quase 30 anos após a morte de Sebastião (que classificava como "bon-vivant, boêmio e mulherengo"). Foi ao escrever a cena na qual o personagem Floriano (não por acaso, um escritor) faz um ajuste de contas com a figura paterna em O Arquipélago. Aliás, na carta a Jorge Amado, Erico diz que as dificuldades para escrever a terceira e última parte de O Tempo e o Vento (obra-prima de sua carreira literária) foram responsáveis pelo estresse que desembocou no infarto. "Há dez anos que esse livro me chateia, me preocupa, muda a minha vida. Devo a ele a ansiedade que determinou a alta da minha pressão arterial, que, por sua vez, originou o acidente cardíaco". 

Em entrevista à Zero Hora, em 2012, Luis Fernando Verissimo lembrou que, afora a cobrança dos meios literários, o próprio pai se angustiava pelo fato de não conseguir concluir a trilogia (da qual fazem parte O Continente, de 1949, e O Retrato, de 1951). 

— Ele parava muito, havia períodos que não escrevia nada. Tem aquela cena da reconciliação de Floriano com o pai, que, de certa forma, é uma reconciliação do meu pai com o pai dele. Por isso, O Arquipélago demorou para ser escrito — contou Luis Fernando. 

Menos mal que, àquela altura, a tarefa estava quase acabada. Ao amigo baiano, Erico diz que, até princípios de setembro, deveria estar tudo "revisado, capado, penteado e liquidado". Ressalta que o livro sairia em três volumes por causa do número de páginas (mil), "pois o preço dum único volume seria insuportável para o comprador". 

A relação de Erico e Jorge Amado foi marcada por muitas afinidades (por bastante tempo, foram os únicos escritores brasileiros a viver do ofício) e algumas divergências. 

— Eles sempre foram amigos, se gostavam muito, mas o Jorge tentava atrair o pai para o Partido Comunista — contou Luis Fernando, lembrando de uma ocasião em que Erico sofreu uma crise de pedra no rim, quando ambos estavam no Rio de Janeiro. — O pai mergulhou em uma banheira quente e o Jorge ficou o tempo todo do lado da banheira, tentando catequizá-lo. O pai dizia: "Eu sou socialista, mas sou contra totalitarismos". 

Na carta guardada na Fundação Casa de Jorge Amado, não há discordâncias ideológicas. Depois da saudação afetuosa ("Velho Jorge"), prevalece a sensação de alívio de Erico por estar vivo, após a "Magra" (como se refere à morte) ter lhe tocado o ombro. Além de agradecer ao baiano pelo telegrama de apoio na hora conturbada, Erico o cumprimenta pela eleição à Academia Brasileira de Letras (em abril de 1961), na vaga de Otávio Mangabeira. Erico também teria sido convidado a disputar aquela cadeira, quando estava no hospital, recém-infartado. "Como posso ser candidato, se já sou quase uma vaga?", respondeu, com o humor sutil e refinado que lhe era característico.

Fonte Zero Hora

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