Quem tem medo de Rosario Castellanos?
A vida de Rosario Castellanos (1925-1974) repartiu-se pela docência, pelo jornalismo e pela escrita. Filha de latifundiários no Chiapas, cedo compreendeu a opressão a que os indígenas e as mulheres estavam votados, tendo desenvolvido ideias fortes sobre cultura e género, profundamente influenciadas por Simone Weil.
Órfã aos vinte e dois anos, doou aos índios mexicanos as terras que herdara, formou-se em Filosofia na Cidade do México, onde se afirmou intelectualmente numa sociedade patriarcal, leccionou nos EUA e terminou os seus dias como embaixadora em Telavive. Uma das primeiras vozes do feminismo latino-americano, legou-nos obras maiores como o romance Balún-Canán (1957), poesia, peças de teatro e uma extensa produção ensaística.
Apresento aqui a tradução de três poemas do capítulo “Viaje Redondo” de Poesía no eres tú. Nos poemas entramos em relação com uma voz-mulher a viver o movimento: seja ele físico tendo a viagem ao exterior como metonímia; seja simbólico, representativo da reformulação incessante de si mesma. A poeta mexicana crescida em Comitán, estado mexicano de Chiapas, embolou num mesmo novelo criativo as questões da morte, das experiências como mulher no “Terceiro Mundo” e da vivência dos povos originários. Sua poética não para de anunciar a amálgama entre o pessoal e o comunitário — o amor e a violência de viver junta.
ENCARANDO LA GIOCONDA
(No Museu do Louvre, naturalmente)
Ri de mim? Faz bem.
Se eu fosse sor Juana
ou Malinche ou, para não sair do folclore,
alguma encarnação de Güera Rodríguez
(como vê, os extremos, igual a Gide, me tocam)
me veria, talvez, como se vê
a espécime representativa
de certa classe social de um país de Terceiro Mundo.
Mas sou apenas uma turista imbecil de cartilha,
daquelas que procuram agência de viagem para que
inventem em seu lugar um tour. E monoglota
além de tudo! que chega pra te contemplar.
E você sorri, misteriosamente
como é sua obrigação. Mas eu te interpreto.
Esse sorriso é chacota. Zomba de mim e do resto de
nós que cremos que cremos que
a cultura é um líquido que se bebe na fonte,
um sintoma especial que se contrai
em certos locais contagiosos, algo
que se adquire por osmose.
DESPREZO
Na terra de Descartes, junto à estufa
– já que neva e tremo –,
não penso, pois pensar não é meu forte; nem sinto,
pois minha especialidade não é sentir senão só
olhar, assim digo
(pois a palavra é o olhar fixo):
que diabos faço aqui na Cidade Lux,
me fingindo de culta e viajada
sem adiar a execução de uma
sentença que caiu sobre mim?
A sentença que dita: “Não existes”. E assinam
os que para assinar usam os Nós
majestoso: o Único que é Todos;
os magistrados, as chancelarias,
as altas partes contratantes, os
treze imperadores aztecas, os poderes
legislativo e judicial, a lista
de vice-reis, a Comissão de Boxe,
os institutos descentralizados,
o Sindicato Único de Locutores e…
…e, solidariamente, meus demais compatriotas.
NINGUNEO
En la tierra de Descartes, junto a la estufa
– ya que nieva y tirito –,
no pienso, pues pensar no es mi fuerte; ni siento,
pues mi especialidad no es sentir sino sólo
mirar, asi que digo
(pues la palabra es la mirada fija):
¿ Qué diablos hago aquí en la Ciudad Lux,
presumiendo de culta y de viajada
sino aplazar la ejecución de una
sentencia que ha caído sobre mí?
La sentencia que dicta: “No existes”. Y la firman
los que para firmar usan el Nos
mayestático: el único que es Todos;
los magistrados, las cancillerias,
las altas partes contratantes, los
trece emperadores aztecas, los poderes
legislativo y judicial, la lista
de virreyes, la Comisión de Box,
los intitutos descentralizados,
el Sindicato Único de Voceadores y …
… y solidariamente, mis demás compatriotas.
CONVERSA ENTRE VIAJANTES
A uma mulher, já velha, que entredorme
enquanto o trem avança
mas que percorre a excursão com uma
avidez que rouba a nobreza de seus anos
(como se ainda crera ou esperara)
pergunto: sua história tem alguma coerência?
O mosaico de dias e ações
formou alguma figura em que pode se contemplar?
Se escreverá um livro com a sua vida?
Se pintará um quadro com a sua cara?
Me vê com repreensão, como a uma impertinente
que não chega a incomodar
ainda que esteja lhe oferecendo
um passado que nega, uma memória
que renunciou a ter, e me responde
que possui uma conta bancária para
comprar a si galerias, bibliotecas,
tudo o que os outros têm encomendado e feito.
E que não necessita de mais nada.
CONVERSACIÓN ENTRE VIAJEROS
A una mujer, ya vieja que entreduerme
mientras el tren avanza
pero que corre a la excursión con una
avidez que le quita la nobleza de sus años
(como si todavía creyera o si esperara)
le pregunto: su historia ¿tiene alguna coherencia?
¿El mosaico de días y acciones
formó alguna figura que pueda contemplarse?
¿Se escribiría un libro con su vida?
¿Se pintaría un cuadro con su cara?
Me ve con represión, como a una impertinente
que no alcanza a turbarla aunque esté adjudicándole
un pasado que niega, una memoria
que renunció a tener y me responde
que posee una cuanta bancaria como para
comprarse galerías, bibliotecas
todo lo que los otros han ordenado y hecho
Y que no necesita de ninguna otra cosa.
julia raiz escreve e trabalha com literatura em várias frentes: tradução, vídeo-poema, podcast, edição, curadoria, pesquisa, escrita de ensaio, composição musical. tudo isso realizado em coletivo.
firrrma de poesia: @totempagu
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