“O livro do figo”, de Lilian Sais: novos sabores e formas para o cotidiano
Obra de poesia convida leitores e leitoras a um olhar mais demorado para aquilo que é visto como simples
Por Bruno Inácio
Após escrever livros como “O funeral da baleia” (Patuá), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e “Motivos para cavar a terra” (Cepe Editora), vencedor do 6º Prêmio Cepe Nacional de Literatura na categoria “Poesia”, Lilian Sais volta a demonstrar técnica, sensibilidade e um olhar atento ao cotidiano em “O livro do figo”, obra recentemente publicada pela Macondo.
Ao longo de pouco mais de 80 páginas, a autora extrai das palavras os significantes mais inesperados e convida leitores e leitoras a um olhar mais demorado para aquilo que convencionalmente é considerado simples.
A poesia que abre o livro já faz isso muito bem. Passeia livremente entre a inocência e o bom humor ao abordar as nuances do figo em versos como “se você nunca viu/um figo/pense numa pera/um pouco menor/ou veja um figo/porque também/já está na hora”.
A fruta aparece em outros poemas. Vira memória afetiva, tema de pesquisa e comida suculenta. Ganha até um lugar sacro em “Os mandamentos do figo”, como determinam os versos “amar o figo/sobre todas/as coisas” e “dar/ao figo/o que é/do figo”.
Às vezes, de forma bastante inusitada, deixa até mesmo de ser fruta sem mudar de nome. O exemplo mais interessante é o de “Gramado”, poema que aborda parte da trajetória de Luís Figo, um dos principais nomes do futebol português, que fez história na Espanha, ao jogar pelo Barcelona e pelo Real Madrid.
As relações familiares também são temas recorrentes. Afetos e traumas sentam à mesa e se unem ao eu-lírico de forma indissociável. A autora deixa espaço para interpretações quando opta por termos que podem significar tanto o acalento quanto a brutalidade. Não há na escrita de Lilian Sais verdades incontestáveis nem palavras rebuscadas. Ainda bem.
A palavra, aliás, é elemento central em “O livro do figo”. Há, em muitas das poesias, uma espécie de investigação a respeito do que é dito ou escrito: “me diz/que palavra poderá/te defender”, questiona o eu-lírico em “Margem”.
Não por acaso, o poema que fecha o livro, “O lugar onde cair”, é sobre escrever num sábado como se nada mais importasse. E, de fato, nada mais importa: “me dê coração ao menos a dignidade/de mergulhar sem chiar/na via láctea/no mais completo silêncio/e se chover/choveu”.
O processo de criação literária também aparece em outros momentos, com destaque para o divertido “Oficina de poesia”: “a verdade, Carlos, é que poesia é ficção/e um poeta deve conhecer seus personagens/saber responder perguntas sobre eles/talvez fazer mapa astral de cada um/depois responder assim ó:/o que ele ouve? o que ele lê?/o que ele faz/quando o titanic afunda?/Carlos, eu não entendo bem/por que você ri de mim/enquanto eu choro sem parar/toda vez que o titanic afunda”.
Ao longo da obra, dividida em quatro partes (“O livro do figo”, “Lances”, “Flutuação” e “Partidas”), Lilian Sais ainda abre espaço para discussões sobre o amor romântico, o silêncio, a memória e tantos outros temas, sem jamais cair no lugar-comum.
Com cada palavra em seu devido lugar e uma pontuação que evita vírgulas, letras maiúsculas e pontos finais, a autora se consolida como uma das vozes mais autênticas e necessárias da atual literatura brasileira, ao mergulhar no cotidiano com delicadeza e curiosidade, sem medo ou pressa.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e autor de “Desprazeres existenciais em colapso” (Patuá) e “Desemprego e outras heresias” (Sabiá Livros). É colaborador do Jornal Rascunho e da São Paulo Review e tem textos publicados em veículos como Le Monde Diplomatique, Rolling Stone Brasil e Estado de Minas.
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@elcocineroloko
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