MENSAGEM AOS AMIGOS DA LUA
Por Milton Hatoum
Tinha doze anos naquele abril de 2020.
Os drones ainda não entregavam comida, tampouco havia esse variado menu de pastilhas. Cada uma concentra os sabores, temperos e as proteínas de um prato, e dá a impressão de que comemos bem. Pode parecer estranho aos robôs e às pessoas de 2090, mas muita gente ainda cozinhava em casa, descascava batatas e frutas, e chupava deliciosas mangas, agora rebaixadas a uma pastilha rosada!
Na longa quarentena de 2020, nossa família seguiu uma dura rotina. Meu pai era corajoso e rígido, mas sua bravura e severidade tiveram que lidar com o medo. Aos 55 anos, ele percebeu que a coragem e a consciência do medo são inseparáveis. Em algum momento, ficou mais maleável, e no rosto paterno notei uma tristeza meiga. Ele até descobriu, com um prazer disfarçado, que podia trabalhar em casa, e que muitas das sessenta viagens por ano eram, se não inúteis, dispensáveis. Por fim, meu pai começou a conversar comigo, e essa foi uma das poucas alegrias da minha juventude interrompida.
A solidão forçada desvelou sentimentos e atitudes, trancados a sete chaves. Na meia-idade, mamãe recuperou seus poderes de matriarca, e só era contrariada pela minha nonna. Juntas, tomaram as rédeas da casa, e ai de quem não as obedecesse. Meu pai colocava a máscara e descia para pegar caixas de alimentos, e ele mesmo lavava embalagens, frutas, legumes. Lá embaixo, nas belas manhãs de abril, assustava-se com a própria sombra, que ele julgava infectada.
Vocês, plenamente adaptados ao ambiente das Sete Colônias Lunares, não imaginam o que era usar máscara. Até nas caminhadas éramos obrigados a usá-la.
As tarefas da escola eram feitas no computador, ainda não havia microchips no cérebro, muito menos esses arrogantes robôs do tamanho de um ovo, que têm a pretensão de ensinar tudo. Ah, quanta saudade dos professores de verdade! E dos ovos! Acreditem, havia ovos! Eu mesmo comia dois ou três por dia; aprendi a preparar ovo poché, treze tipos de omeletes, fritada de legumes e carne seca com ovos, temperada com alecrim e uns pingos de cachaça de Minas.
O tempo de reclusão, medo, tédio foi tristíssimo para quem perdeu parentes e amigos, e extenuante e pavoroso para os profissionais da saúde. Ainda assim, uma horda de bárbaros verde-amarelos xingava aqueles heróis e heroínas. Afinal, arriscar sua própria vida para tentar salvar milhares de pessoas, não é um gesto heroico?
Mas a peste nos conduziu à reflexão. Pensamos em nós mesmos e nos outros; pensamos no desperdício, na ganância, na crueldade, nas tragédias recentes, e no nosso passado, também trágico.
Durante a pandemia surgiram inúmeras previsões otimistas e pessimistas quanto ao futuro. Todos acertaram. Os otimistas porque, uns anos após a catástrofe, a economia do planeta cresceu. Meu pai, um otimista contumaz, parecia um Pangloss pós-peste. Mas os pessimistas também acertaram, porque as guerras não cessaram, a vigilância e o controle digitais suprimiram nossa liberdade, o desemprego e a miséria aumentaram. No Brasil, permaneceu insolúvel o xis desta equação: por que a economia cresce e a desigualdade não diminui? Eis aí um grande enigma, queridos amigos da Lua.
Houve também mudanças e derrapagens ideológicas. A maioria do bando ultraliberal virou apenas liberal. Uma parte da esquerda bandeou para a social-democracia. Os inclassificáveis do “Grande Centro” se vangloriavam de sua cômoda posição simétrica, com guinadas à direita ou à esquerda: raposas oportunistas, sempre apegadas ao poder. A teoria econômica de Keynes foi celebrada e aplicada em muitos países; a de Hayek, execrada.
Aos doze anos, como podia decidir? Acordava otimista, mas, quando anoitecia, ficava melancólico, e ia conversar com a nonna, que me ensinava italiano. Em 1939, ainda criança, ela e os pais migraram da Itália ao Brasil. Não era cética, mas dizia que a solidariedade humana só acontecia tarde demais, e que o reinado do egoísmo e da indiferença triunfariam.
“Vejam o que está acontecendo com a Amazônia e com os indígenas em plena pandemia”, ela protestava. “Não aprendemos nada com os povos da floresta! Vejam a atitude desse Mussolini do submundo, e dos filhos dele... Una famiglia di facinorosi di estrema destra. Sabem qual é o lema dessa gentalha? Exterminem os idosos, os pobres e os indígenas!”
Ela se referia ao presidente de uma República dilacerada. Uma década depois, esse sujeitinho torpe só seria citado nos rodapés dos livros de história. Os humoristas o evocavam com um apelido sutil: Capitão Cloroquina. Mas esse apelido e milhões de relatos sobre a pandemia também foram esquecidos. Para sorte dos leitores, os escritores retomaram suas inquietações íntimas, com seus fantasmas e suas obsessões.
Não eram poucos os momentos de melancolia. Quando minha avó lia notícias de seu país natal, chorava em silêncio. Minha mãe, amante da arte e da literatura italiana, dizia: “A Itália é eterna, mamma”.
Mas me lembro também de coisas boas. As estrelas voltaram a brilhar; a Lua (que ironia!) voltou a ser uma metáfora poética; os pássaros enlouqueciam de alegria naquele outono, quando me deliciei com a leitura de dois romances: “O fim da eternidade” e “Da Terra à Lua”. Li também contos infantojuvenis de Julio Cortázar, Clarice Lispector, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Se alguém das Sete Estações da Lua quiser ler a obra desses autores, basta acionar no microchip a biblioteca Aleph.
Todos os dias, antes de dormir, mamãe lia para mim fábulas das “Mil e uma noites”. Esse repertório de magias e pesadelos me fascinou; quando ouvi a fábula da última noite, já estava encantado por Sherazade, que sobreviveu por saber contar histórias.
Enfim, um conselho deste ancião: não venham tão cedo para cá. Continuem a pesquisar nas Sete Estações. Aproveitem as festas de “Baco nas Crateras”, quando vocês celebram o amor do Cosmo. Bebam o já famoso Bordeaux Lunaire, e mandem umas garrafinhas para este velho dionisíaco. E enviem pelo sistema holográfico mensagens lunáticas de amor e solidariedade aos pobres humanos deste planetinha, que anda pra lá de doente.
Caderno 2-Estadão, 1/05/2020
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