DESCOLONIZAR O PRATO: A CULTURA ALIMENTAR BRASILEIRA PARA ALÉM DA GASTRONOMIA

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a cultura alimentar brasileira, ressaltando a necessidade de descolonizar o conceito tradicional de gastronomia e valorizar as práticas culinárias ancestrais e populares. Analisa-se como o processo colonial e a lógica neoliberal impactam a alimentação e a identidade cultural no Brasil, enfatizando a importância da culinária como forma de resistência, preservação de saberes locais e construção de um ethos coletivo desalienado. O artigo dialoga com teorias da colonialidade, epistemologias do Sul e estudos culturais para fundamentar uma perspectiva que valorize a diversidade cultural e o direito à alimentação como expressão de autonomia e soberania alimentar.

Introdução

A alimentação é um campo de disputa cultural, econômica e política que reflete e reproduz estruturas de poder e opressão. No Brasil, a herança colonial marca profundamente as práticas alimentares, as quais foram frequentemente desvalorizadas e marginalizadas frente a um padrão hegemônico eurocêntrico que define o que é “gastronomia” legítima. Este trabalho visa problematizar o conceito de gastronomia como campo elitizado e homogeneizador, propondo o resgate e a valorização da culinária popular e ancestral como formas legítimas de conhecimento e expressão cultural.

Colonialidade e cultura alimentar

Segundo Quijano (2007), a colonialidade é o poder que persiste após o fim formal da colonização, estruturando relações sociais, epistemológicas e culturais segundo padrões eurocêntricos. Essa colonialidade se manifesta na alimentação por meio da hegemonia da cozinha europeia, que invisibiliza os saberes culinários indígenas, africanos e populares. Mbembe (2019) enfatiza que a descolonização cultural implica reconhecer e valorizar essas narrativas marginalizadas, que expressam modos de vida e saberes corporais em conexão com o território e a ancestralidade.

Como argumenta Santos (2016), as epistemologias do Sul resgatam saberes locais que desafiam a universalidade eurocêntrica, propondo uma pluralidade de racionalidades. No campo da alimentação, isso significa reconhecer as práticas tradicionais, como o uso de plantas alimentícias nativas, técnicas de preparo preservadas por comunidades quilombolas e indígenas, e a dimensão afetiva e comunitária da comida (OLIVEIRA, 2020).

> “A culinária é uma linguagem na qual subconscientemente se traduz a estrutura de uma sociedade.” Claude Lévi-Strauss

Gastronomia versus culinária popular: o problema da homogeneização

A palavra “gastronomia” tem sido historicamente associada a um campo elitizado, ligado ao luxo, à inovação e à mercantilização dos alimentos (COUNIHAN; VAN ESTERIK, 2013). Essa visão reduz e segmenta a comida como produto e espetáculo, distante da realidade cotidiana da maioria da população. Da Matta (1991) e Lopes (2015) ressaltam que a culinária popular no Brasil está imersa em tradições coletivas, memória e resistências que não cabem no molde restrito da “alta gastronomia”.

Mintz (1996) discute como o açúcar, produto colonial por excelência, revela os paradoxos da cultura alimentar, onde a globalização e a mercantilização entram em conflito com a diversidade local. A homogeneização promovida pelo mercado neoliberal (MOLINA; VIVEIROS DE CASTRO, 2011) ameaça a diversidade culinária ao priorizar eficiência e lucro, em detrimento da autenticidade e do vínculo com o território.

> “Por trás do doce servido nas cortes europeias, estava uma moenda de gentes. Gilberto Freyre


A descolonização da alimentação como prática política

Walsh (2009) defende que a interculturalidade é uma estratégia para a descolonização do saber e a construção de relações mais equitativas entre culturas. A descolonização da alimentação implica o reconhecimento da comida como expressão política e simbólica, que sustenta identidades e resistências. Mohanty (2003) destaca a importância do feminismo decolonial na valorização das práticas culinárias femininas, que muitas vezes preservam saberes ancestrais.

A valorização das plantas alimentícias tradicionais, das técnicas locais e do ato de cozinhar como ritual comunitário fortalece o ethos coletivo e a autonomia alimentar (CASTRO, 2002; OLIVEIRA, 2020). Esse processo é fundamental para a superação da alienação cultural produzida pelo modelo neoliberal, que fragmenta as comunidades e desvaloriza suas histórias.

Conclusão

Descolonizar o prato é um ato que transcende a mera alimentação; é um gesto de resistência e reconstrução cultural. Implica romper com as imposições eurocêntricas, reconhecer e valorizar a diversidade dos saberes culinários brasileiros, especialmente aqueles originários das comunidades quilombolas, indígenas e periféricas. O futuro da cultura alimentar brasileira depende da capacidade de articular memória, território e justiça social em torno da comida, como prática viva e fundamental para a identidade e a dignidade humana.


Referências

COUNIHAN, Carole; VAN ESTERIK, Penny (orgs.). Food and Culture: A Reader. New York: Routledge, 2013.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

LÓPES, Sérgio. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

MOLINA, Eduardo Viveiros de; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivas da antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

MINTZ, Sidney W. Tasting Food, Tasting Freedom: Excursions into Eating, Culture, and the Past. Boston: Beacon Press, 1996.

MOHANTY, Chandra Talpade. Feminism without Borders: Decolonizing Theory, Practicing Solidarity. Durham: Duke University Press, 2003.

OLIVEIRA, Deivison de Jesus. Culinária e colonialidade: resistência e identidade no Brasil contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2020.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2016.

WALSH, Catherine E. Interculturalidad, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Abya-Yala, 2009.


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