đŸ”„ERA UMA ESPUMA: DA "DESCONSTRUÇÃO AO ESVASIAMENTO"

A frase de Derrida soa quase profĂ©tica quando olhamos para o que se tornou a gastronomia no inĂ­cio dos anos 2000. Sob a influĂȘncia do modelo AdriĂ , uma culinĂĄria que se dizia inovadora e universal se impĂŽs a partir de um territĂłrio muito especĂ­fico — a Catalunha — convertendo tradiçÔes locais em experiĂȘncias sensoriais abstratas.

A tĂ©cnica, elevada Ă  categoria de discurso dominante, descolou o prato de seu contexto, apagando os rastros da cultura que o originou. A “desconstrução” culinĂĄria, ao contrĂĄrio do que propunha Derrida, tornou-se uma forma de domesticar a diferença e neutralizar o gesto popular, revestindo-o de espuma, pinça e silĂȘncio.

QUANDO A ESPUMA SE SOBREPÕE À PANELA 

> “Minha mãe nunca usou yuzu, nem espuma de milho, nem azeite trufado.”

— Irmãos Roca

A frase, dita por trĂȘs dos maiores nomes da alta cozinha catalĂŁ, soou como um suspiro coletivo. Um gesto de rendição simbĂłlica ao fim de uma era marcada pela estĂ©tica da ruptura, pela performance tĂ©cnica e pela desconstrução como fetiche. Foi tambĂ©m um chamado ao retorno: ao gesto cotidiano, ao sabor essencial, Ă  panela da mĂŁe.

Uma nova geração de chefs estå restaurando o prestígio das receitas tradicionais nos restaurantes, com pratos como 'capipota' ou 'escudella', enquanto a culinåria caseira estå em declínio.

Saberes que nĂŁo precisam de releitura, mas sim de escuta.

A "releitura" se tornou uma licença para reconfigurar memĂłrias coletivas sem diĂĄlogo com as fontes, esvaziando de sentido prĂĄticas alimentares ligadas Ă  oralidade, Ă  ancestralidade e Ă  experiĂȘncia vivida.

DA CATALUNHA AO MUNDO: ENTRE A FILOSOFIA E O MERCADO 

No centro dessa virada esteve Ferran AdriĂ , chef do lendĂĄrio elBulli. Ele propĂŽs uma revolução: transformar o prato em linguagem, a cozinha em pensamento. Inspirado por Jacques Derrida, levou Ă  mesa a ideia da desconstrução — desestabilizar formas conhecidas, criar novas texturas e modos de percepção, sem romper totalmente com a essĂȘncia.

> “A desconstrução preserva o gene do prato.”

“Criatividade Ă© nĂŁo copiar.”

“Devemos estar muito organizados para sermos anárquicos.”

Adrià bebe da fonte do pós-estruturalismo: Derrida desconstruía os binarismos da linguagem; Deleuze propunha saberes rizomåticos, sem centro fixo. O elBulli, nesse sentido, era menos restaurante e mais laboratório de uma nova estética.

MAS A EXCEÇÃO VIROU FÓRMULA 

A “escola da espuma”, como ironizou o chef Santi Santamaria, se expandiu como novo padrão de sofisticação. Multiplicada por reality shows, revistas especializadas e faculdades de gastronomia, a ruptura virou dogma. O gesto subversivo, domesticado, tornou-se cartilha.

O EMBATE: SANTAMARIA VERSUS ADRIÀ 

Santi Santamaria, primeiro chef catalĂŁo a conquistar trĂȘs estrelas Michelin, foi o contraponto. Seu restaurante, El RacĂł de Can Fabes, era um reduto da cozinha enraizada: cogumelos dos Pirineus, sopas rĂșsticas, azeites artesanais, carnes de caça. Cozinha de territĂłrio, de verdade, de memĂłria.

Se Adrià propunha um rompimento radical, Santamaria defendia continuidade e ética. Para ele, a culinåria não era espetåculo, mas gesto cultural, relação com o produtor, afeto no prato. Rejeitava o uso de aditivos industriais, criticava a estética pela estética e denunciava o distanciamento entre o prato de vanguarda e a vida real.

Em 2008, publicou La cocina al desnudo, livro em que formalizou suas crĂ­ticas — com nomes, prĂĄticas e indignação. Foi chamado de retrĂłgrado, mas tambĂ©m de guardiĂŁo. Seu embate com AdriĂ  nĂŁo foi apenas tĂ©cnico. Foi polĂ­tico, simbĂłlico e, sobretudo, territorial.

A ESPUMA E A INDÚSTRIA 

O impacto de AdriĂ , no entanto, nĂŁo ficou restrito ao fine dining. A linguagem do elBulli infiltrou-se na indĂșstria de alimentos. TĂ©cnicas como esferificação, espumas e gĂ©is passaram a ser vistas nĂŁo apenas como truques de chef, mas como tecnologia de produção: maior controle de qualidade, tempo de prateleira, apresentação.

Mesmo que AdriĂ  tenha dito que “a inovação disruptiva na gastronomia foi difĂ­cil de replicar”, o ethos do elBulli — com sua obsessĂŁo por experimentação — abriu caminhos para processos industriais com estĂ©tica gourmetizada. A cozinha, antes lugar de afeto e nutrição, foi sendo atravessada por discursos de inovação, ciĂȘncia e marketing.

O SABOR VOLTA 

O ciclo, no entanto, parece fechar-se. A fala dos irmĂŁos Roca Ă© mais que um desabafo: Ă© sinal de que algo mudou. O que antes era novo virou pastiche. O que era ruptura virou tĂ©dio. E a panela da mĂŁe — com sua ausĂȘncia de yuzu e espuma — voltou a ter valor.

Não como nostalgia, mas como reinvenção afetiva. Como crítica ao excesso, à performance vazia, ao afastamento entre o cozinhar e o viver. Porque, no fim, o sabor não se desconstrói. Se escuta.

Ferran AdriĂ  inaugurou uma revolução estĂ©tica e tĂ©cnica que redefiniu os parĂąmetros da alta gastronomia no sĂ©culo XXI. O que começou como gesto experimental, sensĂ­vel e conceitual — inspirado na filosofia da desconstrução — rapidamente se transformou em modelo de mercado, fetiche tecnolĂłgico e produto de escala.

Ao substituir o tempo da panela pelo tempo do sifĂŁo, e o gesto ancestral pelo algoritmo da textura, a chamada “era Adrià” aprofundou um fosso entre a cozinha tradicional e a indĂșstria alimentĂ­cia, entre natureza e mĂĄquina, entre o alimento como cultura e o alimento como engenharia.

DO ALIMENTO COMO VIDA AO ALIMENTO COMO SISTEMA 

Durante séculos, o alimento foi compreendido em relação ao território, à estação, ao corpo e à cultura. Cozinhar era um ato situado, moldado por ciclos naturais, pråticas coletivas e afetos intergeracionais. A comida vivia do fogo lento, do barro, do pilão, do tempo.

Com a chegada da “cozinha molecular” — termo que AdriĂ  rejeita, mas cuja estĂ©tica o consagrou — o alimento passou a ser tratado nĂŁo mais como organismo vivo, mas como matĂ©ria de manipulação e espetĂĄculo. O sabor virou performance. A aparĂȘncia, linguagem de laboratĂłrio. Espumas, esferas e nĂ©voas aromĂĄticas passaram a ocupar o lugar de moquecas, guisados e fermentados.

A cozinha, antes extensão da terra e da memória, se conectou ao biolab — e não mais ao roçado.

O impacto de AdriĂ  na indĂșstria alimentĂ­cia Ă© incontestĂĄvel:

Lançamento da linha Texturas, com aditivos como alginatos, xantanas e géis, hoje amplamente usados em molhos, laticínios, sorvetes e embalagens "funcionais".

Adoção de tĂ©cnicas laboratoriais para conferir aparĂȘncia “premium” a produtos processados: esferificação, emulsificação artificial, aeração.

Criação de um mercado global de equipamentos e kits tĂ©cnicos — um nicho bilionĂĄrio abastecido por fĂĄbricas e chefs do mundo todo.

O resultado? Produtos que imitam sofisticação, mascarando sua natureza ultraprocessada com uma estĂ©tica gourmetizada. Um snack com “textura explosiva” substitui a tapioca torrada. Uma mousse aerada com aroma sintĂ©tico toma o lugar do guisado de horas. O impacto visual substitui a profundidade do paladar.

⚠ OS RISCOS DESSA VIRADA TECNOLÓGICA 

Deslocamento cultural: pråticas tradicionais são reinterpretadas por olhares técnicos que desconsideram seus sentidos históricos e afetivos.

Desmaterialização do alimento: o que se come deixa de ser reconhecível. A origem se apaga. O sabor se estetiza.

Infantilização do paladar: tudo vira surpresa. Busca-se o “efeito wow” constante, em detrimento da continuidade, da profundidade, da memória gustativa.

Vulnerabilidade regulatĂłria: o uso de aditivos avançados levanta questĂ”es de rotulagem, segurança e transparĂȘncia para o consumidor.

DO LABORATÓRIO AO SUPERMERCADO: UM CAMINHO SEM VOLTA 

O paradoxo da era Adrià é evidente: quanto mais sofisticada a técnica se tornou, mais rapidamente ela foi apropriada por sistemas industriais voltados à escala e à padronização. O que nasceu como arte virou produto. O que prometia liberdade virou protocolo.

A cozinha de laboratĂłrio fragilizou o alimento como linguagem cultural e fortaleceu o alimento como unidade tecnolĂłgica.

RUMO.A UMA NOVA ÉTICA DO SABOR 

Isso nĂŁo significa recusar a tĂ©cnica — mas sim reorientĂĄ-la. O problema nĂŁo Ă© a inovação, mas a falta de enraizamento.

É possĂ­vel, e urgente, desenvolver tecnologia na cozinha sem perder o alimento como cultura, memĂłria e territĂłrio. Que a tĂ©cnica sirva Ă  vida — e nĂŁo o contrĂĄrio.

A cozinha que virĂĄ depois de AdriĂ  terĂĄ de conjugar ciĂȘncia com chĂŁo, gesto com histĂłria, invenção com limite. TerĂĄ de voltar a ouvir o que a panela diz — o som do borbulhar, o cheiro que avisa, o tempo que ensina.

É tempo de comer com o corpo inteiro — e não só com os olhos.

RELEITURA OU REAPROPRIAÇÃO? O CUSTO INVISÍVEL DA INOVAÇÃO GASTRONÔMICA 

Mas quem teve o direito de “reler”? E a que custo?

CrĂ­tica Ă  “releitura”: o apagamento como estĂ©tica

A “releitura”, palavra-chave da cozinha contemporñnea, foi apresentada como um gesto criativo — uma ponte entre o tradicional e o contemporñneo. Mas na prática, serviu muitas vezes como dispositivo de apagamento.

A feijoada virou croquete. O vatapå virou espuma. O angu foi servido em colher de degustação com poeira de carne seca.

Na prĂĄtica, o termo releitura foi frequentemente usado como um dispositivo de apagamento:

‱Apagamento do saber popular, em nome da tĂ©cnica.

‱Apagamento da cozinheira de comunidade, em nome do chef de jaleco.

‱Apagamento do território, em nome da neutralidade do prato no prato branco.

A releitura, quando descolada de contexto, vira reapropriação estĂ©tica. Tira o prato do seu lugar, esvazia o tempo do cozimento, e o recobre com a neutralidade do fine dining. A comida — que era linguagem de memĂłria, pertencimento e territĂłrio — torna-se discurso de prestĂ­gio, passaporte para o pĂłdio dos guias e das premiaçÔes.

E nĂŁo Ă© um fenĂŽmeno exclusivo do Brasil. Essa dinĂąmica se reproduz na AmĂ©rica Latina, em partes da África e do Sudeste AsiĂĄtico — regiĂ”es marcadas por riqueza culinĂĄria oral, onde pratos se tornam "tendĂȘncia" apenas quando sĂŁo reestilizados sob a chancela estĂ©tica ocidental.

Curiosamente, essa tendĂȘncia começou a ser contestada por seus prĂłprios arquitetos.

Em 2025, os irmĂŁos Roca, Ă­cones da alta cozinha catalĂŁ, declararam que era hora de retornar Ă  “cozinha da mĂŁe”. Um gesto simbĂłlico de abandono do excesso tĂ©cnico em favor do gesto cotidiano, simples, essencial.

RenĂ© Redzepi, chef do Noma, anunciou o fim do restaurante em sua forma atual, reconhecendo que a alta gastronomia tornou-se insustentĂĄvel — Ă©tica, afetiva e materialmente.

É hora de escutar o fogão

A releitura nĂŁo precisa ser descartada. Mas precisa ser reposicionada.

Releitura Ă© possĂ­vel quando hĂĄ escuta, cuidado, consciĂȘncia e humildade.

NĂŁo se trata de rejeitar a tĂ©cnica ou a invenção — mas de reconhecer que existem limites Ă©ticos e afetivos entre a inovação e o apagamento.

Talvez o mais radical, hoje, seja voltar ao bĂĄsico:

Ao cheiro do refogado. À colher de pau. Ao guiso.

É tempo de sair da escola da espuma.

Não para negar o que ela ensinou — mas para lembrar o que ela esqueceu.

ReferĂȘncias e DiĂĄlogos

Ferran Adrià (El Bulli) e a desconstrução aplicada à cozinha como linguagem filosófica.

Jacques Derrida, filósofo da desconstrução, e sua crítica às estruturas binårias e às hierarquias da linguagem.

Gilles Deleuze, com a noção de saberes rizomáticos — descentralizados, interligados, orgñnicos.

Santi Santamaria, chef catalão e crítico contundente da chamada “gastronomia molecular”, defensor da tradição e do enraizamento.

IrmĂŁos Roca, do Celler de Can Roca, e seu recente retorno Ă s raĂ­zes afetivas da culinĂĄria catalĂŁ.

Impactos da “releitura gourmet” em cozinhas tradicionais brasileiras e perifĂ©ricas — como a feijoada que vira croquete, o vatapĂĄ que vira espuma, o angu servido em colher de degustação com poeira de carne seca.


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