🔥DO FOGO COLETIVO AO PALCO DA PERFORMANCE: A CRONOLOGIA DA COMPETIÇÃO NAS COZINHAS SOB O OLHAR ATENTO DO CAPITALISMO.


Há um tempo atrás, uma aluna querida me escreveu: estava concorrendo a uma vaga num reality show de culinária negra e me pediu para votar nela, divulgar, fazer campanha. Havia entusiasmo em sua voz, e uma esperança legítima: mostrar sua comida, sua história, sua força. Mas, com todo respeito e carinho, eu respondi que não faria isso.

Não por ela. Mas pela estrutura que a envolve e aprisiona.

Disse que não voto em realites culinários porque não acredito na competição exacerbada que eles promovem. Que, ainda que tragam rostos negros para a tela, seguem operando sob a mesma lógica capitalista de sempre: a do destaque individual, da eliminação simbólica e da fetichização da comida como espetáculo.

O formato é sempre o mesmo: uma cozinha montada como arena, cronômetros que impõem pressa, jurados que medem técnica mas ignoram afeto, e um troféu solitário ao final — como se cozinhar fosse vencer e não partilhar.

Não sou contra visibilidade. Mas visibilidade sob o olhar do mercado não é reconhecimento: é exposição. E não basta pintar de preto um palco que foi feito para a guerra — se a guerra segue sendo o método.

A cozinha negra não nasceu para competir. Ela nasceu para curar, para resistir, para alimentar em tempos de escassez. Ela é quintal, é ajunta-panela, é comida de santo, é fogão coletivo. Transformá-la em performance é arrancá-la da terra e colocá-la no palco — onde ela precisa se adequar, se explicar, se vender.

Essa recusa não é um não à aluna. É um sim à comida que não quer ser espetáculo. É um sim às cozinheiras invisíveis que seguem sustentando territórios com farinha, folhas, pilão e silêncio.Durante milênios, cozinhar foi uma prática coletiva, relacional e afetiva. Nas comunidades tradicionais, sobretudo nas sociedades indígenas, afro-diaspóricas e camponesas, o saber culinário era transmitido de forma oral, cotidiana e não hierárquica. A comida era partilha — tanto de alimento quanto de tempo, histórias, rituais e cuidados.

No campo dos estudos sobre história e cultura da alimentação, as cozinhas regionais despontam como potentes expressões de identidade. Em "Vozes femininas, saberes culinários: o feminino e a dinâmica das identidades regionais por meio da culinária", Maria Henriqueta Sperandio Garcia Gimenes e Luciana Patrícia de Morais lançam luz sobre o papel das mulheres na construção e manutenção dessas tradições. A partir de depoimentos de cozinheiras tradicionais de Minas Gerais e do Paraná, o estudo evidencia como os saberes culinários femininos articulam memória, território e gênero, reafirmando as mulheres como protagonistas na transmissão das culturas alimentares regionais.

📄 Leia o artigo completo: Vozes femininas, saberes culinários (PDF)

Um exemplo vivo dessa prática são as casas de farinha, espaços comunitários onde se processa a mandioca. Lá, tudo é feito de forma partilhada: desde a colheita nos roçados até o momento de raspar, ralar, espremer, torrar e embalar. Mulheres, homens, crianças e anciãos participam. Cada etapa tem um ritmo próprio, que respeita o tempo da terra e o tempo do corpo.

> 🍠 A casa de farinha não é só um lugar de produção: é também de conversa, de troca de saberes, de riso, de música e memória. É onde se aprende sem aulas e se ensina sem mandar.

Não há chef. Não há disputa. Há colaboração, respeito à ancestralidade, à coletividade e ao alimento como vínculo com o território. A farinha ali produzida carrega o gosto da terra, da lenha e da convivência.

> 🗨️ Como diz uma mestra do assentamento 1º de Abril, no sul da Bahia:

"A farinha boa não é só a que é sequinha. É a que junta gente pra fazer."


> 🔎 Fonte:

•Silva, R. C. da. Cozinha Ancestral: Alimentação e Resistência nas Culturas Afro-brasileiras. (2018)

•Sahlins, M. A Economia da Idade da Pedra (1974): aponta que as chamadas "sociedades primitivas" operavam mais pela reciprocidade que pela escassez e competição.

Com a Revolução Industrial e o nascimento dos restaurantes na França pós-revolução (final do século XVIII), nasce a figura do chef profissional. Georges-Auguste Escoffier sistematiza a “brigada de cozinha”, transformando a cozinha em uma estrutura hierarquizada e baseada na produtividade.

🔧 A brigada de cozinha:

Inspirada no exército napoleônico, a brigada criada por Escoffier distribui funções rigidamente:

•Chef de cuisine (comando geral)

•Sous-chef (subchef)

•Chef de partie (chef de estação: carnes, molhos, entradas, etc.)

•Commis (ajudantes)

•Plongeur (lavador de louça)

Essa organização transforma a cozinha em uma fábrica de pratos. A criatividade cede espaço à repetição técnica. O cozinheiro vira operário especializado, e o alimento, produto. O tempo — antes regido pelos ciclos naturais e pelo afeto — passa a ser cronometrado. A autoridade não é mais a anciã ou a mestra do ofício tradicional, mas o homem com jaleco branco e toque alto.

> 📖 Escoffier publica em 1903 o Le Guide Culinaire, com mais de 5 mil receitas padronizadas. Esse livro torna-se base para escolas de gastronomia até hoje.

🌍 A cozinha francesa como padrão global

Com a colonização cultural europeia e a expansão do império francês, a culinária da França foi alçada ao status de “alta cozinha”. Prêmios, escolas, guias e sistemas de avaliação (como o Guia Michelin, criado em 1900) reforçaram essa hegemonia.

✈️ Exemplos do impacto:

Instituições como Le Cordon Bleu (fundada em 1895) difundem o padrão francês globalmente, formando gerações de chefs em países do Sul Global com base em técnicas europeias, ignorando os saberes locais.

Manuais de etiqueta e serviço baseados na corte francesa substituem modos de servir africanos, indígenas, asiáticos ou camponeses como "primitivos" ou "rudes".

Até hoje, o vocabulário técnico da cozinha internacional é majoritariamente em francês: mise en place, julienne, concassé, bouquet garni, etc.

> 🧩 Resultado: A padronização e a homogeneização da culinária mundial, com forte apagamento de saberes femininos, populares, indígenas e africanos. O “refinamento” virou sinônimo de europeização.

🎯 O que se perde nesse processo

•A afetividade da cozinha comunitária, substituída pela produtividade industrial.

•Os saberes empíricos das cozinheiras tradicionais, trocados por técnica acadêmica e exclusão simbólica.

•A diversidade de modos de comer, reduzida à estética do prato individual, com proteínas ao centro e guarnições simétricas.

> 🗨️ Como escreveu Sidney Mintz em Sweetness and Power (1985):

“A comida é um campo de disputa entre o poder, o gosto e a história.”

> 🔎 Fonte:

•Ferguson, Priscilla Parkhurst. Accounting for Taste: The Triumph of French Cuisine (2004)

•Escoffier, A. Le Guide Culinaire (1903): estrutura que define a brigada moderna.

Esse processo excluiu saberes femininos, populares e não-europeus, instaurando uma lógica de especialização e excelência técnica que ecoa até hoje.

Com programas como MasterChef, Hell’s Kitchen, Top Chef e similares, a lógica da competição se intensifica. A televisão transforma cozinhar em performance: tempo cronometrado, jurados impiedosos, eliminação, humilhação. A cozinha vira ringue.

As câmeras penetram a intimidade do prato, mas esvaziam a relação com o território, o tempo e a coletividade. A comida deixa de ser vínculo e vira produto audiovisual.

> ⏱️ O tempo do reality é o tempo da ansiedade: 30 minutos para criar, cozinhar e embelezar um prato que precise “impressionar”. O que importa não é alimentar, mas vencer.

🇧🇷 No Brasil: da cozinha popular ao entretenimento de massa

No Brasil, a lógica do entretenimento gastronômico ganhou enorme força com versões locais e originais:

🍳 MasterChef Brasil (desde 2014 – Band)

Popularizou o vocabulário técnico entre o público.

Impôs uma estética eurocentrada de cozinha “sofisticada”, onde ingredientes como foie gras e frutos do mar são tratados como símbolo de excelência.

Participantes que valorizam saberes populares frequentemente são descredibilizados, a menos que “refinem” esses saberes para caber no paladar burguês.

> 🧠 Segundo pesquisa da UFRJ (2021), o programa reforça a ideia de meritocracia e reforça desigualdades raciais e de classe, já que participantes brancos e de origem urbana são mais valorizados.

🔥 Cozinheiros em Ação (GNT) e Top Chef Brasil (Record)

Mantêm a lógica da competição, mas com foco em chefs profissionais.

Estimulam o empreendedorismo como solução mágica, sem questionar a precarização do setor gastronômico.

A comida vira passaporte para o sucesso individual.

🍽️ Merendeiras sob julgamento: a espetacularização do cuidado

Nos últimos anos, algumas iniciativas de realities tentaram dar visibilidade a merendeiras e cozinheiras escolares — como o “Merendeiras do Brasil”, realizado pelo Ministério da Cidadania em parceria com o Canal Futura (2019–2020), em formato de concurso culinário.

Ainda que traga reconhecimento, esse tipo de competição também carrega uma contradição: ao transformar o trabalho cotidiano de alimentar centenas de crianças em espetáculo, esvazia-se a complexidade da função dessas mulheres. A alimentação escolar envolve planejamento, afeto, resistência à falta de estrutura — não apenas criatividade em “empratar bonito”.

> 🗨️ Como disse uma merendeira finalista:

“Aqui não tem só receita, tem muito improviso. Mas tem também muito amor. Isso não cabe no tempo de um programa.”

💡 Críticas e contradições

•A lógica da competição individual se sobrepõe à ideia de cozinhar como partilha.

•A performance substitui o cuidado.

•A pressa substitui o tempo do fogo brando.

•O espetáculo invisibiliza os saberes não-escolarizados.

Além disso, a cozinha popular só ganha espaço quando é romantizada ou transformada em “exotismo gourmet”. A mulher preta da periferia ou do quilombo só é celebrada quando sua comida se encaixa na narrativa da superação — e nunca como portadora legítima de um saber civilizatório

📣 Em vez de palco, círculo: pensar outras formas de visibilidade

O desafio contemporâneo é romper com o paradigma da competição como única forma de reconhecimento. Precisamos de espaços onde cozinhar volte a ser encontro, e não confronto. Onde as histórias contadas pelas panelas não precisem de um júri, mas de escuta. Onde a comida não precise de medalha, mas de memória.

> 📊 Dados:

•Em 2020, MasterChef Brasil teve cerca de 5 milhões de espectadores por episódio, com forte impacto entre jovens e aspirantes à gastronomia.

•Pesquisa da Universidade de Lancaster (2020) mostrou que esses programas reforçam estereótipos de “chef herói”, individualista e resiliente, mas também perpetuam relações de poder desiguais e elitismo culinário.


> 🔎 Fonte:

•Johnston, Josée & Goodman, Michael. Spectacular Foodscapes: Food Celebrities and the Politics of Lifestyle Mediation in an Age of Inequality (2015)

O empreendedorismo gastronômico como fetiche contemporâneo

Hoje, a competição se internaliza sob o nome de “empreendedorismo”. Merendeiras, cozinheiros populares, chefs independentes são estimulados a “criar sua marca”, “vender sua história”, “viralizar sua receita”. A busca por protagonismo substitui o valor do coletivo, e a precarização é romantizada como “autonomia”.

> 📊 Dados:

Segundo o SEBRAE (2023), 65% dos microempreendedores individuais no setor de alimentação são mulheres negras, que enfrentam dupla jornada, baixa remuneração e informalidade.

O Brasil possui cerca de 7 milhões de MEIs; muitos deles estão na alimentação, sem segurança alimentar própria garantida.

> 🔎 Fonte:

•Ribeiro, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? (2018) – discute o mito da meritocracia e o apagamento de saberes populares.

•Pochmann, Marcio. A Nova Classe Média? (2012): analisa como a precarização do trabalho é disfarçada de empreendedorismo.

Resistências: o retorno às cozinhas de afeto e ancestralidade

Apesar da lógica da competição, crescem os movimentos que revalorizam cozinhas comunitárias, saberes ancestrais, o tempo do preparo, a comida como vínculo. Iniciativas como o Ajeum da Diáspora (Angélica Moreira), a Cozinha Quilombola (Kilombo Tenondé) ou as Oficinas Sotoko são formas de resistência à lógica capitalista da visibilidade e da urgência.


> 🔎 Fonte:

•Projeto DIAITA – Patrimônio e Culinária (Portugal-Brasil)

•Caderno de Saberes Alimentares Quilombolas, CONAQ e Instituto Socioambiental (2021)

A competição, sob o capitalismo, deixou de ser um estímulo saudável e passou a ser um princípio organizador da vida — inclusive na cozinha. Mas cozinhar pode (e deve) ser também um gesto político de resistência. Repartir, cozinhar junto, ouvir as mais velhas, usar folhas do quintal, valorizar o tempo do fogão de barro — tudo isso é subversão.

⚖️ Quem ganha e quem perde com a fetichização da culinária?

🏆 Quem ganha?

O mercado gastronômico globalizado, que transforma ingredientes, pratos e saberes locais em commodities. Um prato de acarajé pode ser vendido por R$80 em um restaurante premiado, enquanto as baianas de tabuleiro lutam por licença e respeito.

•As grandes plataformas e marcas, que lucram com chefs-influencers, programas de TV, cursos online, eventos e publicidade. A lógica do algoritmo favorece a comida que rende clique, não a que cura fome.

•A elite gastronômica e midiática, que se apropria de saberes populares sem reconhecer suas origens. A cozinha afro-indígena vira “tendência”, mas as cozinheiras de terreiro seguem invisibilizadas ou empurradas para o rodapé das reportagens.

•O mito do empreendedorismo de sucesso, que promove histórias individuais de superação enquanto apaga as violências estruturais que moldam o acesso à terra, ao fogo e à palavra.

💔 Quem perde?

•As cozinheiras e merendeiras populares, que sustentam a alimentação de milhares com criatividade, afeto e resistência, mas são lembradas apenas quando encaixam em narrativas de exceção ou entretenimento.

•Os saberes coletivos e ancestrais, que perdem lugar para a técnica formal, para o empratamento europeu e para o tempo da performance. O pilão, o quintal, o forno de barro e o segredo passado de boca em boca vão sendo silenciados.

•As comunidades tradicionais, que veem seus alimentos sagrados virarem produtos gourmet sem retorno ou reconhecimento. A colonização muda de roupa, mas segue viva no prato.

•A comida como cuidado, como vínculo e como política, substituída pela comida como mercadoria. O prato se afasta do chão, da mão, da história — e se aproxima do palco, do lucro, da solidão.

✊🏾 Mas há resistência. E ela cozinha em fogo baixo.

Quem perde, resiste.

Quem é apagado, acende seu tacho.

Quem é empurrado para fora do espetáculo, constrói roda.

Enquanto houver mutirão de beiju, ajunta-panela, comida de santo feita a muitas mãos, crianças aprendendo a colher no quintal com as avós — a lógica do espetáculo não vencerá por completo.

> “Cozinhar não é vencer. Cozinhar é lembrar. É cuidar. É repartir. E isso não cabe num reality show.”

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