đ„ GASTROLOGOS BUROCRATAS ENTRE O SABER E O FAZER
Sua presença carrega traços de superioridade moral e intelectual, como se detivesse a chave do bom gosto â o "goĂ»t" francĂȘs â que paira acima das prĂĄticas populares e das cozinhas de quintal. Ele nĂŁo cozinha, mas opina. NĂŁo partilha o alimento, mas o descreve. Transita entre o salĂŁo e a instituição como um curador de sentidos, um diplomata do paladar.
No Brasil, o gastrologo opera como um mediador entre um paĂs que nega ou silencia sua cultura alimentar e uma elite que busca na comida um sĂmbolo de distinção. Ele ajuda a revestir o prato simples com camadas de discurso, transformando o trivial em raro, o comum em tendĂȘncia, o ancestral em "experiĂȘncia".
Esse personagem, ao invĂ©s de construir pontes com as cozinheiras, com as mestras e com os quintais â constrĂłi vitrines. Torna o alimento algo a ser exibido, nĂŁo vivido. Ă nesse gesto que se revela a tragĂ©dia: saboreia-se o âgostoâ da sofisticação, mas se perde o chĂŁo do alimento.
HĂĄ um deslocamento em curso no campo alimentar. O que antes era vivido na coletividade do fogo, no tempo das avĂłs, nos quintais e nas casas abertas, hoje Ă© cada vez mais enquadrado, mediado e performado por especialistas, certificaçÔes e discursos. A figura do gastrologo burocrata â aquele que teoriza sobre a comida sem tocar nela, que fala sobre territĂłrios sem pisar neles â Ă© um sintoma dessa separação crescente entre o saber e o fazer.
O termo âgastrologoâ Ă© pouco usado em paĂses de lĂngua inglesa ou francesa. Em contextos internacionais, o que mais se aproxima dessa figura sĂŁo ĂĄreas como:
Food Studies (Estudos Alimentares): campo interdisciplinar que mistura antropologia, histĂłria, sociologia, nutrição, cultura e polĂticas pĂșblicas.
Exemplo: Universidade de Nova York (NYU) tem um prestigiado programa de Food Studies.
Gastronomia Cultural / Gastronomia Aplicada: presente em algumas universidades da Europa e AmĂ©rica Latina, como o Instituto Paul Bocuse (França) ou a Universidade de CiĂȘncias GastronĂŽmicas de Pollenzo (ItĂĄlia).
Culinary Anthropology (Antropologia CulinĂĄria): campo acadĂȘmico, mas nĂŁo uma profissĂŁo.
Em resumo: o saber existe, o cargo formal com o nome âgastrologoâ, nĂŁo. A figura profissional equivalente atua como pesquisador, consultor de polĂticas pĂșblicas, curador alimentar, ou educador culinĂĄrio â mas sem uma designação padronizada.
A PROFISSĂO DE GASTROLOGO NĂO Ă REGULAMENTADA NO BRASIL
No Brasil âGastrĂłlogoâ Ă© um tĂtulo informal, frequentemente usado por formados em cursos superiores de Gastronomia, mas nĂŁo existe reconhecimento legal da profissĂŁo pelo MinistĂ©rio do Trabalho.
HĂĄ formação superior em Gastronomia, mas o tĂtulo de âgastrĂłlogoâ nĂŁo dĂĄ direito automĂĄtico a registro profissional, nem hĂĄ um conselho de classe regulamentando.
Profissionais que atuam na ĂĄrea podem se apresentar como chefs, cozinheiros(as), consultores(as) gastronĂŽmicos, professores(as), curadores(as) alimentares, ou pesquisadores(as) â mas âgastrĂłlogoâ permanece um termo nĂŁo oficial, ainda que popular.
Esse âvazio legalâ Ă© justamente o que permite a ascensĂŁo de uma figura ambĂgua: o gastrologo burocrata, muitas vezes sem prĂĄtica de cozinha, mas com capital simbĂłlico e institucional para definir polĂticas, ocupar espaços de fala e representar saberes que nĂŁo vivencia.
Ou seja: o problema nĂŁo estĂĄ no estudo da alimentação â mas na captura simbĂłlica do fazer por sujeitos que falam âsobreâ, mas nĂŁo âdesdeâ.
O SABER EM EXCESSO: QUANDO O DISCURSO ULTRAPASSA O TEMPERO
Na tradição oral das cozinhas ancestrais, o conhecimento se transmite pelo gesto, pelo cheiro, pelo olho e pela paciĂȘncia. NĂŁo hĂĄ ficha tĂ©cnica nem tempo cronometrado. HĂĄ escuta, corpo e experiĂȘncia.
Mas na cultura neoliberal da eficiĂȘncia, da performance e do controle, esse saber-vivido Ă© substituĂdo por um saber-padronizado. O cozinheiro vira executor de protocolos. E o gastrologo, figura de fala autorizada, torna-se o novo orĂĄculo: interpreta culturas, escreve polĂticas pĂșblicas, define tendĂȘncias â muitas vezes sem jamais ter sujado as mĂŁos de urucum ou provado uma jaca ao pĂ©.
Essa crĂtica encontra eco no pensamento da antropĂłloga Nina Mol, que ao estudar cozinhas hospitalares e industriais observou o quanto âa cozinha desaparece enquanto prĂĄtica corporal e afetiva, e vira apenas logĂstica, gerenciamento e segurança alimentarâ. Ă a culinĂĄria transformada em algoritmo.
A GASTRONOMIA COMO APARELHO IDEOLĂGICO
O termo âgastronomiaâ, jĂĄ problematizado por autoras como Deborah Luptovisky e Sophie Chevalier, carrega um elitismo embutido. Ela surge como um saber de classe â nascido nos salĂ”es franceses â e historicamente distante da comida popular. A tentativa de âgourmetizarâ tudo â do acarajĂ© ao cuscuz, do pirĂŁo ao cafĂ© de coador â Ă© tambĂ©m um processo de captura simbĂłlica. O que era resistĂȘncia passa a ser performance.
Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, alerta: âa comida nĂŁo Ă© apenas um objeto de consumo, mas uma expressĂŁo de territĂłrio, memĂłria e comunidadeâ. Quando arrancamos o alimento do seu chĂŁo simbĂłlico e o transformamos em produto de mercado, perdemos mais do que sabor â perdemos ancestralidade.
A TECNOCRACIA DO FOGO
Nas universidades, nas agĂȘncias de cultura, nos editais pĂșblicos, cresce o nĂșmero de especialistas em comida. Isso, em si, nĂŁo Ă© um problema â o problema Ă© quando esses especialistas substituem as mestras, os cozinheiros populares, os saberes que vĂȘm da oralidade. Quando quem cozinha de verdade nĂŁo Ă© chamado para as mesas de debate, mas apenas para "executar a receita", temos uma nova forma de colonialismo interno: o da burocracia do paladar.
O gastrologo burocrata assume o lugar do griĂŽ, mas sem vivĂȘncia. Interpreta sem participar. E essa distĂąncia Ă© perigosa, porque cria polĂticas que nĂŁo reconhecem os corpos que sustentam a cultura alimentar viva: mulheres negras, quilombolas, indĂgenas, ribeirinhas, agricultoras, cozinheiras domĂ©sticas.
ENTRE O FOGO E O FORMULĂRIO: O QUE NOS CABE?
Ă preciso reclamar o lugar do fazer como forma de pensamento. Cozinhar Ă© uma epistemologia. PilĂŁo, fogueira, fermentação, folha, gordura â sĂŁo tecnologias. Quando uma mestra cozinha, ela mobiliza histĂłria, territĂłrio e tempo. Quando um territĂłrio planta, colhe e processa seus alimentos, ele resiste Ă monocultura e Ă monoculinaridade. Esse saber nĂŁo cabe em PowerPoint.
Ă urgente, portanto, reconectar teoria e prĂĄtica. Colocar os corpos que cozinham no centro das decisĂ”es. Criar polĂticas pĂșblicas a partir dos territĂłrios â e nĂŁo de laboratĂłrios assĂ©pticos. O alimento nĂŁo Ă© apenas um objeto de estudo. Ă uma linguagem. E como toda linguagem, ele precisa ser vivido.
UMA CULINĂRIA DE VOLTA AO CHĂO
O futuro da comida não estå nos fornos de indução ou nos forros de linho dos restaurantes premiados. Estå no tempo lento da roça, no cheiro da folha queimada, no sabor da farinha viva. Estå nos quintais urbanos, nos mutirÔes de plantio, nas mãos calejadas que temperam com história.
Se o gastrologo burocrata representa o excesso de mediação, que venha então a cozinheira-mestra, a guardiã do tempo, a anciã da folha. Que ela retome a palavra, e com ela, o fogo.
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