COZINHAR É LEMBRAR: A COMIDA COMO MEMÓRIA NA OBRA DE CHIMAMANDA ADICHIE


Mais do que sustento, a comida, na escrita de Chimamanda, é lembrança viva, afeto compartilhado e herança que desafia o esquecimento.

Em sua visita recente ao Brasil, Chimamanda Ngozi Adichie reafirmou aquilo que sua literatura há tempos revela com sutileza e firmeza: a comida é uma linguagem da memória. Em seus romances e contos, os alimentos não aparecem como detalhes decorativos — são fios de pertencimento, herança e resistência que ligam personagens ao território, à ancestralidade e à comunidade. 

Ao mencionar o sabor do fufu, o aroma da sopa de egusi ou o gesto de enrolar o moi moi em folhas de bananeira, Adichie constrói uma narrativa onde a culinária nigeriana se impõe como lugar de afirmação cultural e afetiva.

Seus romances e contos estão impregnados de aromas, texturas e sabores da Nigéria, em especial da cultura igbo, que se tornam marcadores profundos da experiência de seus personagens.

Os alimentos — e, por extensão, as plantas que os originam — surgem como símbolos afetivos, políticos e espirituais, conectando o presente à ancestralidade.

Desde o hibisco roxo que dá nome ao seu primeiro romance — uma flor rara cultivada pela tia Ifeoma, símbolo de liberdade e pensamento crítico — até pratos como a sopa de egusi (feita com sementes de melão africano moídas) e o tradicional fufu de inhame, a autora costura saberes culinários à construção subjetiva de seus personagens. Comer, em sua obra, é muitas vezes resistir: é lembrar quem se é, mesmo quando o entorno tenta apagar isso.

Em Americanah, por exemplo, os personagens imigrantes descobrem que carregar sua comida é carregar sua história. Ao buscar folhas de quiabo ou óleo de dendê nos mercados afro de Nova Jersey, Ifemelu não está apenas cozinhando — está afirmando sua origem diante de um mundo que a quer assimilar.

Em The Thing Around Your Neck, um dos contos traz uma cena em que uma jovem nigeriana imigrante se depara com o abismo entre o sabor do fast food americano e a complexidade de uma sopa de okra feita com folhas frescas e especiarias, como se aquele prato lhe faltasse o tempo, a voz e o solo.

A cozinha em Adichie é quase sempre feminina. São mulheres — mães, tias, avós — que plantam, colhem, pisam o feijão, fervem folhas amargas, enrolam o moi moi em folhas de bananeira. São elas que transmitem a linguagem silenciosa dos temperos e dos cuidados diários. Mesmo quando silenciosas, suas presenças são estruturantes: a comida, nesse contexto, é uma linguagem de sobrevivência e legado.

Em Hibisco Roxo, um trecho emblemático revela como a comida pode ser espaço de reconstrução íntima e simbólica:

> “O aroma da sopa de egusi vinha da cozinha, espesso e familiar, como se carregasse consigo um pedaço de casa.”

Nesse momento, o cheiro da comida não é apenas sensorial — ele evoca afeto, abrigo e possibilidade de mudança. Em meio ao silêncio imposto por um lar autoritário, o alimento surge como sinal de vida, de outra narrativa possível, onde os sentidos e os afetos ainda têm lugar.



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