PAULINA CHIZIANE: A CONTADORA DE HISTÓRIAS QUE TEMPERA A LITERATURA COM A ALMA DE MOÇAMBIQUE
Nascida em Manjacaze, no sul de Moçambique, e criada entre as línguas chope, ronga e o português colonial, Chiziane construiu uma obra que entrelaça o íntimo com o político, o corpo com a terra, e a palavra com a comida.
Em sua literatura, a comida não é apenas sustento, mas símbolo de identidade, desigualdade e poder.
Nas suas palavras, a cozinha moçambicana ainda luta por reconhecimento nos espaços de prestígio:
> “Não nos sintamos inferiorizados em comer um peixe seco num hotel de cinco estrelas. […] é tempo de descolonizar a nossa cozinha!”
Em Niketche: Uma História de Poligamia, Paulina revela as normas rígidas que cercam o ato de alimentar o marido: a mulher deve servi-lo de joelhos, em pratos e não na panela — ritual que desnuda a estrutura patriarcal em que o alimento se torna instrumento de dominação. Ao mesmo tempo, é nesse espaço doméstico e culinário que as mulheres também constroem estratégias de autonomia, sedução e sobrevivência.
🥥 Matapa e plantação de memórias
Para Paulina, o matapa — guisado de folhas de mandioca, amendoim e leite de coco — é mais que comida; é ancestralidade:
> “Tinha ao lume uma m’boa, folhas de abóbora que depois de cozidas (…) seriam o caril certo para partilhar com a sua neta.”
A cena revela o simbolismo dessa alimentação simples, mas carregada de memória familiar e tradição, ligada aos momentos de união e transmissão entre gerações.
A culinária tradicional moçambicana, com pratos como a matapa — feita com folhas de mandioca, amendoim e leite de coco — surge em sua fala pública como um ato político. Paulina denuncia a invisibilidade das comidas locais nos grandes hotéis, em favor de cardápios europeus, e propõe a descolonização da cozinha. Reivindica que pratos como xima, xiguinha, peixe seco e txatini ocupem o lugar que lhes é de direito na cultura e na economia do país.
Mesmo em romances como Ventos do Apocalipse, onde a fome é uma personagem silenciosa, Chiziane provoca o leitor a pensar sobre as folhas: por que comemos o fruto e não comemos as folhas? Em tempos de guerra e escassez, ela propõe a inversão da norma como metáfora de resistência — comer a folha como quem come o que resta da dignidade.
Ao mencionar o matapa, ela reflete aquele instante primordial entre avó e neta: um ritual que transcende o sabor e ativa a memória. Em sua casa, “tinha ao lume uma m’boa… seriam o caril certo para partilhar com a sua neta” .
Essa comida simples, feita com folhas de mandioca e amendoim, conecta gerações e fortalece o elo com a terra.
🌱 A língua, as plantas e a identidade
A escritora reflete sobre os limites do português em nomear a flora africana e exige maior respeito linguístico:
> “Temos uma fruta … massala … que a língua portuguesa não consegue nomear. O mesmo se passa com as flores. […] comecei a andar de folha em folha.”
Esse “andar de folha em folha” é metáfora tanto da pesquisa linguística quanto da redescoberta cultural — uma busca por raízes invisibilizadas pela colonização.
A folha, aliás, aparece em sua fala também como símbolo linguístico. Ao criticar os dicionários portugueses, que classificam palavras africanas com viés racista, Paulina diz que precisa "andar de folha em folha", reinventando a linguagem, semeando sentido onde a língua colonizada tentou apagar.
Paulina também denuncia os limites da língua colonizada:
> “Temos uma fruta … massala … que a língua portuguesa não consegue nomear… comecei a andar de folha em folha.”
Premiada com o Prêmio Camões em 2021 e reconhecida internacionalmente, Paulina Chiziane é uma escritora que escreve com o corpo, com a terra e com os sabores. Sua obra é uma oferenda ancestral que convida o leitor a ouvir histórias em torno do fogo, a mastigar os significados das palavras e a saborear, entre metáforas, os alimentos que sustentam a alma de Moçambique.
Paulina Chiziane, através da literatura e da gastronomia, abre uma mesa generosa onde cultura, identidade e resistência são saboreadas — um convite a “descolonizar” não só a língua, mas também os pratos, as memórias e, sobretudo, quem somos.


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