A FORÇA DAS INICIATIVAS COLETIVAS NA REVITALIZAÇÃO DA HERANÇA CULINÁRIA

Mais do que cozinhar, essas ações são formas de resistência, preservação de identidades e afirmação de modos de vida ancestrais.

A Centralidade das Mulheres na Revitalização dos Saberes Alimentares Tradicionais

Em cada canto do mundo, do quilombo à aldeia, do campo às periferias urbanas, cresce um movimento potente e silencioso, mas profundamente transformador: a retomada dos saberes alimentares tradicionais como instrumento de resistência, autonomia e afirmação cultural. No centro desse movimento, estão as mulheres. Guardiãs das sementes, dos saberes, dos modos de fazer, dos rituais e das memórias que atravessam gerações.

Historicamente, foram as mãos femininas — muitas vezes invisibilizadas pela lógica colonial, patriarcal e capitalista — que sustentaram os lares, as comunidades e os territórios. São elas que cuidam dos quintais, que conhecem os ciclos das plantas, que sabem transformar o que a terra oferece em alimento, em cuidado e em cultura. Suas cozinhas são muito mais do que espaços domésticos: são verdadeiros laboratórios de conhecimento, de ciência ancestral e de transmissão oral.

A erosão desses saberes não é fruto do acaso. Ela está diretamente ligada aos processos de colonização, de expropriação dos territórios, de industrialização da alimentação e de imposição de modelos de consumo que desvalorizam tudo aquilo que não se encaixa na lógica da produtividade, da eficiência e do mercado. E, dentro desse processo, o apagamento dos conhecimentos femininos, comunitários e ancestrais tem sido sistemático.

Por isso, a atual revitalização das práticas culinárias tradicionais, que se espalha pelos cinco continentes, não é apenas um movimento cultural ou gastronômico — é um ato político, feminista, anticolonial e anticapitalista. É uma insurgência contra os sistemas que tentam transformar alimento em mercadoria, cultura em produto e biodiversidade em patente.

Quando uma mulher planta, colhe, cozinha e ensina, ela não está apenas nutrindo corpos. Ela está reafirmando uma cosmologia, uma relação com o tempo, com a natureza e com a coletividade que desafia o modelo neoliberal vigente. Ela está preservando línguas, histórias, afetos, práticas espirituais e modos de existência que sustentaram povos por séculos.

Resgatar receitas, modos de fazer, festas, rituais e saberes associados à alimentação não é apenas uma questão de memória — é um ato político. É uma resposta ao apagamento cultural promovido pela homogeneização dos hábitos alimentares e pela imposição de modelos industriais, que desconsideram as especificidades dos territórios, dos povos e dos saberes transmitidos de geração em geração.

Esse movimento não se limita a um lugar ou a uma cultura específica — ele atravessa fronteiras e se manifesta em diversas partes do mundo.

Na Índia, o projeto Telangana Kathalu Onamaalu representa uma verdadeira renascença gastronômica da cultura Telugu. Através de narrativas, oficinas, encontros e da valorização das práticas alimentares locais, a iniciativa resgata histórias ancestrais, ingredientes esquecidos e modos de preparo que carregam séculos de tradição. 

Trata-se de uma mobilização que não apenas celebra a culinária local, mas também educa, empodera e conecta comunidades em torno da própria identidade cultural.

Na África Ocidental, especialmente em países como Gana, Senegal e Nigéria, surgem movimentos de valorização das cozinhas tradicionais, ameaçadas pela urbanização acelerada e pela influência dos alimentos ultraprocessados. 

Thiam, através de projetos comunitários e de empresas sociais, impulsiona a economia local e combate o êxodo rural, ao mesmo tempo em que protege práticas agrícolas sustentáveis.

Na América Latina, multiplicam-se experiências que conectam alimentação, território e identidade. 

No México, o movimento pela valorização do milho nativo e das práticas milenares da nixtamalização é central para a preservação das culturas indígenas. Coletivos como Tamoa, liderado por mulheres indígenas e campesinas, resgatam variedades ancestrais de milho e promovem a produção de tortillas feitas à moda tradicional, desafiando a hegemonia da indústria alimentícia.

Na Colômbia, projetos como Fogón Colombia se dedicam a mapear, documentar e fortalecer as cozinhas regionais, sobretudo das populações afrodescendentes, indígenas e campesinas. São iniciativas que reconhecem a culinária como patrimônio imaterial e como instrumento de resistência frente às desigualdades e à perda dos saberes.

Assim como em Telangana, em Dakar, na Cidade do México ou em Salvador, no Brasil, vemos o fortalecimento de movimentos liderados por comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas e rurais, que lutam pela preservação de suas práticas alimentares, do cultivo dos quintais, do uso das plantas alimentícias tradicionais e dos modos de fazer passados oralmente, de geração em geração. São movimentos que reafirmam que cozinhar é também uma forma de existir, resistir e narrar histórias.

Quando uma comunidade decide cultivar seus próprios alimentos, retomar práticas culinárias ancestrais ou ensinar às novas gerações os saberes das avós e dos anciãos, ela não está apenas preservando uma tradição: está fortalecendo sua autonomia, sua soberania alimentar e sua conexão com a terra. Está, também, reafirmando que há outros modos possíveis de viver, produzir e se relacionar com o alimento — modos que respeitam o tempo da natureza, o ciclo das estações, os vínculos comunitários e a dignidade das pessoas.

Esse movimento significa, portanto, uma revalorização dos territórios, dos ingredientes locais, das cozinhas como espaço de transmissão de cultura e dos saberes como patrimônio vivo. É um chamado à escuta, ao cuidado e ao respeito por conhecimentos que, durante muito tempo, foram marginalizados, desvalorizados ou invisibilizados, sobretudo quando vêm de povos originários, comunidades quilombolas e populações periféricas.

Revitalizar a herança culinária é, acima de tudo, uma maneira de sustentar o futuro, um futuro que se nutre da memória, da coletividade e da ancestralidade.


O Papel da ONU no Fortalecimento da Herança Culinária e dos Sistemas Alimentares Tradicionais

O movimento global de revitalização da herança culinária tradicional não surge isolado — ele também encontra respaldo em diretrizes e pactos internacionais, especialmente nas agendas da Organização das Nações Unidas (ONU).

A ONU, por meio de seus organismos, como a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) e a UNESCO, tem reconhecido que os sistemas alimentares tradicionais são essenciais para a construção de um futuro sustentável, resiliente e justo. Esses sistemas são guardiões da biodiversidade, da soberania alimentar e do equilíbrio ecológico, além de serem pilares fundamentais das identidades culturais dos povos.

Em 2019, a ONU declarou a Década da Agricultura Familiar (2019-2028), reconhecendo que são os pequenos agricultores, pescadores, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais que alimentam a maior parte do planeta e que, apesar disso, seguem invisibilizados e marginalizados nos sistemas de poder global. A defesa da agricultura familiar é, portanto, uma defesa direta dos sistemas alimentares enraizados nos territórios e nas práticas culturais ancestrais.

Além disso, a UNESCO, por meio da Convenção de 2003 sobre a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, tem reconhecido práticas alimentares como patrimônios da humanidade, como é o caso da dieta mediterrânea, do kimchi coreano, da cozinha tradicional mexicana, dos saberes da cozinha francesa e dos sistemas agrícolas andinos de cultivo da quinoa. Esse reconhecimento não é apenas simbólico: ele visa proteger, promover e transmitir esses saberes para as futuras gerações.

O Fórum Global de Soberania Alimentar, organizado pela ONU e movimentos sociais, fortalece, desde os anos 2000, o conceito de soberania alimentar, que vai além da segurança alimentar, ao defender o direito dos povos de decidir sobre seus sistemas de produção, distribuição e consumo de alimentos, priorizando a produção local e sustentável.

Em 2021, a ONU organizou a Cúpula dos Sistemas Alimentares, com o objetivo de transformar os sistemas alimentares globais, mas também foi duramente criticada por movimentos campesinos, indígenas e quilombolas, que denunciaram a captura desse debate por interesses corporativos. Esse episódio explicitou que, embora a ONU tenha um papel relevante na valorização dos sistemas alimentares tradicionais, as disputas geopolíticas e econômicas que atravessam esses espaços ainda são intensas.

Portanto, o papel da ONU é, ao mesmo tempo, fundamental e paradoxal: suas agências e declarações ajudam a proteger, reconhecer e valorizar os saberes tradicionais, mas é na força dos movimentos populares, das comunidades e das redes territoriais que esses saberes se mantêm vivos, dinâmicos e resistentes frente às lógicas extrativistas do sistema global.


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